No meio do salão, ao lado de uma parede preta recheada com frases de efeito e desenhos em giz branco havia uma mesa. Ela não parecia grandes coisas, era só uma mesa grande de madeira, sem detalhes em baixo relevo ou um painel de botões para escolher a altura ideal. Uma família numerosa conseguiria fazer uma refeição nela, daria para jogar futebol de botão também se quisesse, mas fora isso ela não tinha nada demais. Seu único propósito era ser ocupada por quem fosse chegando na empresa de Tecnologia metida a moderna em que trabalhei alguns anos antes da pandemia.
Eu me sentei no canto próximo à janela. A vista dava para uma avenida famosa na capital baiana cheia de prédios comerciais, mas por aqui não costumamos glorificar prédios. O que tinha de importante nessa mesa ainda seria construído por mim, pouco a pouco. Sem nem ao menos me dar conta do que estava fazendo, criei uma revolução silenciosa na Fábrica de Software – eles usavam outro nome bonito para atrair pessoas, como aquelas luzinhas na ponta de antenas em peixes abissais cheios de dentes – onde, até aquele dia, ninguém se ajudava.
A máxima no ambiente corporativo de Tecnologia da Informação sempre foi permeada por uma cultura egoísta. Machista, homofóbica e misógina também, mas não vamos chover no molhado (hoje não, Faro!). Ninguém quer ajudar ninguém e os que até gostariam de fazer, estão sem tempo para isso, ou pior, são desencorajados. Tudo é estruturado de uma forma a, como já diria o Cantor Senior Jedi Renato Russo, não termos tempo a perder com coisas imbecis e improdutivas como trocar uma ideia ou responder uma dúvida.
Existe um recorte bem marcado entre antes e depois da pandemia, antes e depois da mudança em larga escala para o trabalho remoto nas empresas de TI. Não é um movimento à toa esse o das grandes Big Techs de exigirem a volta da força de trabalho ao modelo presencial. Vai de encontro a um dos propósitos do capitalismo de baixar salários, gerar desempregos em massa e escassez, mesmo numa profissão tão necessária e, em comparação com outras, eu diria privilegiada. Ainda que se tenha a estratégia vil de marcar 200 reuniões inúteis coladas umas nas outras, tantas vezes por cima das outras também, é muito mais difícil microgerenciar o trabalhador estando ele longe de um escritório aos olhos dos capatazes.
Em 2017 fui demitido de um contrato ao qual trabalhei ao longo de quase seis anos, e se for pensar para quem eu trabalhei (só pulando de empresas no esquema de terceirização) foi mais de uma década toda dedicada ao mesmo lugar. Trabalhando basicamente com as mesmas pessoas, mas desde que o golpe foi dado e nosso querido Vampirão assumiu a presidência, as coisas foram degringolando até terminar em episódios de burnout sucessivos que, incrivelmente, não foram a causa da minha demissão.
Numa escala que foi seguindo a linha de quem ganhava mais até só sobrarem os estagiários, chegou a minha vez numa segunda-feira. Esperaram eu terminar o meu café – que eu precisava tomar na empresa para dar tempo de chegar no horário – para me avisarem da “difícil, mas necessária decisão” de me cortarem. Foi um dos piores dias da minha vida, profissionalmente falando.
De lá até eu sentar na mesa ao lado da janela da Fábrica de Software com direito a videogame e bebidas alcoólicas liberadas todas as sextas-feiras eu voltei algumas casinhas no jogo da vida. Precisei trabalhar a dois ônibus e dois trens de distância da minha casa (cada trecho) até voltar a um lugar que fosse próximo de onde morava e me pagasse quase o que recebia quatro anos antes.
A minha primeira semana nessa nova empresa foi mágica. Tudo realmente parecia moderno, as ideias, as propostas, o lugar tinha sido recém reformado e ganhara o nome de Studio. Só que as ideias eram as mesmas de sempre.
Studios e Arapucas
Existe uma lei não cravada em pedra, mas que era sempre seguida de que os novatos precisam sofrer até chorar, até criar RESILIÊNCIA para descobrir a ferro, fogo e pizzas às 23hs da noite, coisas que poderiam ser ditas e explicadas com uma simples conversa de dez minutos. Quando perguntava algo aos mais antigos eles sequer olhavam para me responder. Isso quando pronunciavam alguma palavra, na maioria das vezes era só uma expressão vazia, um daqueles emojis de dúvida 🤔.
Não sou um excelente programador, e isso falo sem aquele papo de síndrome do impostor. Eu realmente não sei o nome da maioria das coisas que faço ou utilizo, não perco noite estudando documentações ou novas linguagens de programação, nunca fui de ir em congressos e eventos de tecnologia – a única vez que fui em um bebia todos os dias de 11 da manhã até 5 da madrugada, sequer sei onde o congresso aconteceu – e tampouco tenho esse amor todo por código. Eu apenas faço um trabalho bem feito nos padrões que eu vou aprendendo e aprimorando. Algo que, se outra pessoa for mexer, vai conseguir quanto nada entender o que fiz. E isso tem sido mais do que suficiente ao longo de pouco mais de vinte anos trabalhando na área.
A verdade é que passei anos sendo péssimo e sobrevivendo até aprender alguns atalhos. Teve um dia inclusive que peguei um erro para resolver e fui olhar a parte do código problemática e falei em voz alta num tom jocoso “Quem fez essa maravilha aqui?” e quando pesquisei quem tinha sido a alma renegada que havia digitado aquilo adivinha o que eu descobri?
A maioria das coisas relacionadas ao trabalho com TI não são, necessariamente, intrincadas e tecnológicas. Muito do que a gente precisa fazer é negociar, conversar e, na maioria das vezes, aceitar prazos irreais e entregar o que der. Seguimos todos nesse ciclo sem fim do Rei Leão onde, provavelmente, quem vai morrer pelas mãos do irmão malvado são justamente aqueles que dão de tudo e sentem a dor de dono, mesmo não recebendo um centavo sequer dos lucros da empresa.
No primeiro dia de trabalho me entregaram um notebook e nada mais. “Sente aí onde quiser” e toma aqui já uma atividade. Pra hoje. Perguntei onde conseguia um mouse e deram uma gargalhada alta. Apontaram pro Salvador Shopping. E eu achando que ia pegar meu kit com teclado e tudo mais. Imagina só? Empresa moderna não tem essas coisas.
Do meu lado sentou um sujeito que decidiu que não ia gastar dinheiro com mouse ou teclado. Ele botava o notebook num suporte que ele trouxe de casa e digitava no teclado suspenso 45 graus. Doía minhas mãos só de ver, mas ele seguia assim. As pessoas riam dele. Falavam mal dos códigos dele. Não ajudavam ele em porra nenhuma.
A minha primeira atividade e a dele eram no mesmo sistema. Eu comecei a trocar ideia com ele e bolei um plano. A gente seguiu um cara que era o ex-dono do sistema no horário de almoço e fomos no mesmo restaurante que ele. Comecei a puxar conversa com amenidades e, quando voltamos para a empresa, ele explicou o sistema. Esse a gente já dominava.
Esse sujeito que digitava no notebook suspenso só conseguiu trabalhar na empresa comigo. Isso porque eu era a única pessoa que o tratava como um ser humano. Em uma dessas sexta-feiras que a gente começava a beber às 16hs no Studio, ele tinha uma tarefa urgente pra ontem (spoiler: todas eram) para entregar. Ele havia tentado diversas vezes e já estava puto da vida que não conseguia resolver. A gente tomou duas latinhas, ele apagou todo o código e me explicou o que tinha que fazer. Sem eu ter dito nada a ele, ele resolveu a treta em uns quinze minutos. Tudo lindo, tudo perfeito. Tomamos mais duas latinhas e saímos de lá tarde, sem ganhar um real de hora extra, mas felizes. Essa é uma das melhores lembranças que tenho daquele lugar.
Ele só durou quatro meses no trabalho porque as outras pessoas não acreditavam nesse negócio de tratar bem os demais, isso era frescura. Ele se irritava muito fácil com “brincadeiras” e não era muito afeito a assédio moral. E para quem trabalhou em Fábrica de Software, digo, Studio, sabe que bullying e assédio é serventia da casa. Sempre que ele ficava muito indignado, ele se levantava da mesa, ia até o Shopping, passeava por uma ou duas horas e voltava.
Numa tarde, acho que era uma quarta-feira porque havíamos almoçado moqueca de arraia no cai duro antes do Shopping (acredito que elas eram pescadas ali no Rio das Tripas), ele dobrou e guardou em sua mochila azul escura o seu suporte de plástico, deixou o notebook em cima da mesa ainda aberto e foi embora sem nem se despedir. Nunca mais voltou. Provavelmente havia se cansado de tanto passear no Shopping, deve ter enjoado de ver as mesmas lojas sempre.
Com o passar das semanas. a mesa foi ganhando lugares fixos. Por mais que a ideia fosse ter “um lugar vivo e mutante” segundo a menina de cabelo colorido e óculos roxo do RH, esse lugar mágico onde as pessoas tinham dez minutos para perguntar se a outra estava bem ou se precisava de alguma ajuda, foi ganhando adeptos. Foi crescendo ao ponto de surgirem puxadinhos. Ao ponto de antes de qualquer coisa, a gente se permitir a perguntar se alguém precisa de alguma ajuda. E se preciso fosse, quem já havia sangrado antes, ensinava os atalhos e mostrava onde estavam as armadilhas que o sistema corporativo armava para gente cair à “troco de nada”.
RPG de Carta
Um dia, um dos CEOs da empresa surgiu com uma ideia “brilhante” de um Game Corporativo. Era uma espécie de imitação de Magic The Gathering (um jogo de cartas com elementos de RPG) com o intuito de GAMIFICAR– era moda na época – o trabalho e AUMENTAR A PRODUTIVIDADE da empresa.
Sem entrar muito em detalhes, o jogo claramente incentivava as pessoas degladiarem umas com as outras. Era repleto de cartas que atrapalhavam os outros ou que as contagens que valiam mais pontos eram apenas mais trabalho não remunerado, mais esforço sem nenhuma recompensa que geravam pontos para você trocar numa caneca e outros itens.
Na reunião de lançamento eu comentei isso com um colega. Abri os olhos dele e falei que o certo seria um game que fizesse as pessoas trabalharem juntas. Assim, poderíamos entregar mais coisas, com menos sacrifícios e menos pizzas às 23hs da noite, sem essa arapuca de “o computador é seu, pode levar pra casa” (pra trabalhar extra sem a gente pagar). Mais trabalho em conjunto e menos essa onda de quem entrega mais, de quem fica até mais tarde, de quem vai jogar a carta do pantano e dragar todos os pontos do coleguinha.
— Oxe, boa ideia! Porque você não fala isso com ele, brother? — Inocente, ele me perguntou apontando pro chefe.
Eu apenas ri, porque já sabia onde ia dar. Eu expliquei que era o mesmo que dar murro em ponta de faca, mas ele fez o que vocês estão esperando que ele tenha feito. Ele parou todo o evento, levantou a mão e perguntou para o dono da empresa.
A resposta foi em tom de chacota, risadas e frases que envolviam desde meritocracia à lei da selva, dentre outros comentários em corporativês. É isso o que eles querem, nos humilhar, nos fazer de alvo, nos azucrinar até a gente pedir pra sair.
Escrevi minha carta à mão agradecendo a oportunidade de trabalhar ali e solicitando meu desligamento após alguns meses, mas para ir para um lugar melhor que é onde estou até hoje.
Quando fui embora, já éramos duas mesas, metade do andar dominado por uma cultura que já parecia ser a nova lei, cravada em pedra e tudo. Os estranhos eram as pessoas mais antigas que ainda viviam reclusas, donas de seus reinos de códigos mal escritos e indecifráveis. Tenho amigos até hoje desse local, um deles trabalha comigo, outro se mudou recentemente pra minha rua e vamos frequentar em breve o mesmo centro de tortura a mesma academia.
São os laços que fazemos ao longo do caminho que me interessam, não a quantidade frameworks ou linguagens que eu digo que domino no Linkedin.
Parece loucura, mas existem locais em que mesmo servindo ao capital, as pessoas lhe tratam com alguma dignidade. É difícil de encontrar, mas o importante é se dar conta das coisas que estão nos cercando, é saber ler as mensagens cifradas e, principalmente, saber jogar o jogo. E para jogar bem você precisa antes de mais nada de uma boa mesa.
Marcio, eu sou uma inconformada com esses ambientes hostis de trabalho. Logo que me formei fui trabalhar em um escritório de advocacia de massa e só consegui ficar 1 mês. Eu lembro que foram 30 dias (menos, porque eu me negava a "adiantar" as demandas aos finais de semana como sugerido pela coordenação) de puro sofrimento, choro e indignação.
Com a reforma trabalhista e depois com a crise da pandemia ficou muito complicada relação de trabalho.
Fico feliz de saber que você está num ambiente mais saudável agora.
abraços.
eu ri muito lendo, mas com respeito.
vou ter que voltar para esse tipo de ambiente dentro de alguns meses e tô pensando nas estratégias que vou usar para não coringar.
🤡