Que fique aqui registrado: 2022, mais um ano que se passa e ninguém me convida para um Caruru. Para quem é de fora da Bahia entender, essa é a maior prova da sua importância perante a sociedade baiana, se você não é convidado para um Caruru em Setembro, você é um nada.
O pior de tudo é que eu sei o porquê dos convites terem ficado escassos com o tempo. A culpa foi toda minha, ainda que, na época, eu fosse apenas uma criança.
O mês do Caruru
Mesmo que o calendário diga que é Setembro, todos os baianos se referem a este como o mês do Caruru dos Sete Meninos ou de Cosme e Damião se você for afeito ao sincretismo religioso. Hoje não vou entrar na discussão sobre o que, no fundo, no fundo, representa o sincretismo religioso, vou me reservar apenas a descrever, para quem não é daqui, o que compõe um Caruru completo.
Pois bem, um Caruru completo é composto de caruru — sim, temos os nossos próprios Inceptions, se lasque aí Nolan — vatapá, arroz, feijão de leite, xinxim de frango, milho branco, banana frita, pipoca, farofa de dendê, pedacinhos de cana, dentre outras iguarias. Mais do que uma refeição para convidar pessoas e dividir afeto, é um evento que cria uma fusão não apenas culinária como também religiosa. E, por isso, assim como muitos personagens poderosos, possui mais de um nome, podendo ser conhecido como Caruru de promessa ou dos sete meninos e, se você trabalhar na Rede dos Magalhães, de Cosme e Damião.
Antes de eu me tornar essa pária social que ninguém lembra de mandar sequer um zap e dizer “vem aqui em casa comer um Carurel”, todo mês de setembro eu tinha que reservar espaço na agenda e no estômago para os carurus que rolavam.
O caruru enquanto celebração religiosa trata-se de um evento onde se festeja os Ibejis, as crianças gêmeas que passaram a perna em Exu, o Rei da Dança. Ou seja, não seria qualquer baratino simples que iria fazer os gêmeos vencerem Exu, eles tiveram que meter dança também. Outros Orixás também são homenageados, já que a culinária está intimamente ligada às celebrações religiosas no Candomblé. (Fonte: https://www.salvadordabahia.com/as-10-coisas-que-voce-precisa-saber-sobre-o-tradicional-caruru/).
A bênção do quiabo dourado
Como já dizia o Cidade Negra, para entender o Erê tem que tá moleque. Pois bem, antes de mais nada saibam que eu era uma criança no evento que vou relatar abaixo e que pode estar ou não relacionado com essa esse abismo social em que me encontro atualmente.
No Caruru dos 7 meninos as pessoas antes de se servirem precisam esperar que os sete primeiros pratos sejam entregues a sete crianças e eu no século passado ainda me encontrava numa posição de respeito perante a sociedade soteropolitana e, por isso, fui convidado certa feita para ser um desses meninos.
Bom, pelo menos é o que gosto de pensar, não vou dar ouvidos ao meu primo que falou que saíram catando crianças aleatórias e calhou de eu estar passando o fim de semana na casa dele no glorioso bairro do Vale dos Lagos. Não vou mentir, me senti muito feliz nesse dia, mesmo não entendendo bem ao certo todos os costumes e tradições religiosas. Para ser sincero, eu só estava feliz porque iria comer.
As coisas começaram a fugir de controle quando meu garfo encontrou um elemento estranho debaixo dos dois quilos de comida que estavam em cima de um prato fundo duralex, daqueles marrons que eram como membros da família brasileira naqueles tempos.
“Porra, olhe aqui Buraco”, puxei um quiabo inteiro que tinha no meu prato e mostrei pro meu primo que ganhou esse apelido numa partida de RPG (história para um outro dia). Eu ria bastante, mas meu primo estava rindo mais.
“Se fudeu!”, as crianças aprendiam rapidamente a comunicação não violenta. Buraco largou os talheres e fez aquele gesto que você está pensando, com as mãos, repetidas vezes.
“Pois é, pelo visto ninguém aqui sabe que tem que cortar os quiabos pra fazer Caruru. Olhe praqui Buraco”, eu ainda ria, porque até aquele instante estava abraçado com a ignorância, a amiga de todas as pessoas inocentes que não sabem ainda o ‘plot twist’ que as aguarda.
“Oxe, você não sabe não é?”
“O quê? Num sei o quê?”
“Quem tira o quiabo inteiro…”, Buraco respirou fundo se recuperando de mais gargalhadas, “...tem que oferecer um Caruru no ano seguinte”. E os gestos continuaram.
Sabendo que nunca teria capacidade emocional para avisar aos meus pais que eles teriam que oferecer um Caruru e encontrar sete outras crianças para participarem de um sorteio no qual o vencedor teria que dar outro Caruru, numa verdadeira pirâmide reversa, ou melhor, uma corrente do bem e da fartura, eu agi da maneira mais responsável e astuta possível naquela situação.
Aproveitei que o filho do dono da casa (e que estava ofertando o Caruru) deu um vacilo, e enterrei o quiabo inteiro no fundo do prato dele. Buraco abriu os olhos tal qual personagem de anime, duas bolas brancas de sinuca na minha frente. Sua faca caiu no chão no instante em que eu voltei e me encostei na escada do corredor do prédio, como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse tido a audácia de ousar enganar os Ibejis em sua própria celebração. Um pecado que carrego comigo até hoje e que, provavelmente, está ligado a mais um ano que se passa sem um convite sequer, tendo que ir em self service à quilo para pagar caro por um pouco de Caruru.
Não tardou muito e o menino puxou (ao contrário de mim) com orgulho o quiabo inteiro preso com maestria na ponta de seu garfo. Tal qual a criança que achou um dos pássaros dourados em Jaspion, ele gritou com alegria:
“Olhe pai, que bênção! Peguei o quiabo inteiro”
Nesse momento eu já havia largado meu prato no chão, Buraco continuava a rir e eu, mais que todo mundo, batia palmas de forma efusiva.
“Que benção! Me convidem ano que vem outra vez”
E esse foi meu último Caruru no Vale dos Lagos.
Meu voto é secreto e alguns fatos divertidos
Às vezes tento me enganar para dormir melhor pensando que, como era criança, tenha sido abonado desse pecado. Só que a verdade é que depois desse ano, os convites que eram abundantes começaram a se tornar escassos, sendo que o último aconteceu num Caruru de promessa, só que diferente dos mais tradicionais. Os pais de um amigo meu fizeram um Caruru para comemorar que seu filho finalmente tinha começado a namorar. Colocaram um Santo Antônio de cabeça para baixo e tudo mais.
Essa minha história eu contei também no primeiro episódio do Suco de Umbivis que, reza a lenda, retornará para mais uma temporada ainda nesse ano que, com fé em Jah, marcará o fim dessa Era das Trevas que nos encontramos nesse país.
Quem sabe em 2023 eu finalmente ofereça um Caruru. Acho que vou fazer isso, afinal, estaremos vivendo uma democracia.