Quando eu cheguei a sala já estava parcialmente completa. Tinha esse costume besta de aparecer minutos antes do horário marcado1, nem muito cedo para não ficar ansioso pensando que ninguém apareceria, nem muito tarde para não ser alvo de todos os olhares e morrer a cada passo desastrado meu.
Sempre passei em frente à Casa Rosa no Bairro do Rio Vermelho, em Salvador, mas aquela seria a primeira vez que iria conhecer o centro cultural por dentro. Subi as escadas conforme me indicaram e logo dei de cara com o salão onde seria ministrada a Oficina de Escrita Criativa pela escritora Sara Bertrand. Já comentei sobre o melhor ensinamento que ela nos deixou em outro envio, mas hoje quero falar sobre outras coisas.
Hoje quero conversar um pouco sobre o que a gente carrega conosco e nem nos damos conta, ou sequer enxergamos. Às vezes, precisamos de um outro olhar, de outro observador, para apontar algo ao qual já faz tão parte da gente que nem conseguimos mais disassociar.
Consegui me apresentar e falar o porquê de estar ali sem muita dificuldade, mas só consegui ler algo escrito por mim – ali, durante a oficina – no segundo e último dia do encontro. Como já diria o Biquini Cavadão, “eu carrego comigo essa grande agonia, já não sei o que fazer com essa minha timidez”. Mentira, eu sei o que fazer, só é difícil.
Em diversos momentos, era proposto que lêssemos nossos textos em voz alta. A escrita criativa tem esse lugar onde a gente escreve num compasso cadenciado, sem se preocupar muito com grafia ou com repetições e sinônimos. E era o que vinha praticando na minha cadernetinha feita a partir de materiais recicláveis que levei para o encontro. Escrever é muito fácil, ler o que você acabou de rascunhar sem nem tempo de rever algo, aí já são outros quinhentos.
À medida que as outras pessoas iam lendo seus ensaios, eu ficava cada vez mais desencorajado a ler os meus. Tudo parecia tão poético, tão lindo que não me sentia confiante em falar as besteiras que minha mão biruta escreveu. A culpa era dela, eu já estava com a desculpa na ponta da língua caso alguém reclamasse ou não gostasse de algo que falasse ali.
Só que esse cenário só existia na minha mente. Estava todo mundo lendo textos sem revisões, sem uso de sinônimos e muito menos sem alguma ajuda editorial ali. Em dez minutinhos não existe tempo hábil para puxar algo escrito por Luis Fernando Veríssimo do Chat Gepeto com o tema inusitado que Sara Bertrand acabara de jogar ao vento. Não mesmo, mas só descobri isso quando li um dos meus textos no segundo dia.
A proposta era de que, em cinco minutos, a gente escrevesse um texto com frases iniciadas da seguinte maneira: "Com [tal pessoa] eu aprendi a/que [blá blá blá]". E assim eu fiz, e li pela primeira vez em voz alta na Casa Rosa.
Com meu pai aprendi a odiar carros, tamanha era a sua fissura por automóveis.
Com meu avô aprendi a sempre sorrir quando as palavras nos faltam.
Com minha avó aprendi que não se pode ter pena de galinha quando estamos degolando o seu pescoço pelado. Ainda tenho pesadelos com Cremilda correndo na roça sem a cabeça.
Com minha mãe aprendi a me doar pelos outros, mesmo que com isso não recebamos nada em troca.
Com meu irmão aprendi como é ver o mundo por um cone minúsculo.
Com Xandy Harmonia aprendi a aceitar o desafio.
Com Pitty, ainda que ache que o mundo gire depressa pra caray, aprendi que quando penso em você, ele pode girar bem devagar.
Não foi nem de perto o texto que mais gostei de escrever, mas quando eu li, eu descobri o segredo de eventos como aquele. Quando você está rodeado de pessoas com a mesma vibração e interesse, falando em voz alta, as palavras tomam outro sentido. Parece que elas ficam mais bonitas do que quando a gente lê aqui dentro da gente.
Algumas pessoas riram, outras disseram que adoraram, mas Anna Kendrick – invento alcunhas pras pessoas que não conheço ou não sei o verdadeiro nome – foi quem me mostrou algo que, intrinsecamente, minha mente já sabia, mas que não estava ainda tão claro pra mim.
"Aprendizado por contraste. Sabe? Foi o que mais me chamou a atenção no que você escreveu quando você falou sobre não gostar de carros mesmo com seu pai amando. A gente aprende muito assim. A gente acha que aprende só por exemplos e associação, mas a gente também aprende a ter nossos próprios conceitos sobre determinados assuntos independente do que as outras pessoas achem ou tentam nos passar."
Onde mais eu poderia me dar conta disso se não naquele dia 8 de agosto de 2023, num dos bairros que mais amo e mais frequentei dessa cidade?2
A escrita criativa é um local seguro se praticada sozinha. Você encontra por aí um tantão de cursos online baratinhos e até muita gente “ensinando” gratuitamente nesses sites de propagandas intercaladas com vídeos.
Escrever é mesmo muito fácil, mas escrever sem amarras, sem preocupações, sem quantificar ou tornar tudo o que fazemos em um produto. Sem esperar um retorno maior do que o tempo que investimos em algo que a gente gosta e, por contrapartida, nos faz um bem danado, desse jeito já fica mais caro.
Publicar, fazer sucesso, engajar pessoas, saciar a fome de algoritmos cada vez mais azeitados em escalas industriais é outra parada muito mais complicada.
Um pouco menos complicado é fazer o que você gosta, e se tiver a oportunidade de se encontrar com outras pessoas na mesma vibe que a sua, presencialmente, é ainda mais poderoso como bem mostrou aqui Virginia Valbuza.
Não é minha pretensão me colocar num lugar onde eu ensine algo para as pessoas, não é esse o meu objetivo aqui. Escrever pra mim é muito mais um escape do que um propósito de vida.
É muito mais sobre as coisas que eu não faço.
A Beleza é a Inveja de quem ainda não desejou
Ao longo da oficina de escrita criativa na Casa Rosa, mergulhei em um universo de aprendizado onde as diferentes vozes e experiências dos participantes foram meu Olho de Thundera. É muito sutil a forma como a gente aprende a compartilhar nossos sentimentos, nossas visões tortas do mundo.
Sinceramente, eu não sei em qual local no espaço tempo eu poderia esvrever algo como “A beleza é a inveja de quem ainda não desejou” se não livre de qualquer expectativa, apenas com algumas sugestões mínimas de temas. E de quebra, ainda desenhar um bicho todo feio no que sobrou da página.
Parece bobo quando alguém lhe diz que para perder a timidez você precisa “se jogar”. Não precisa nem sair da sua zona de conforto como muitos dizem, aliás, odeio essa expressão, se me é confortável é claro que vou querer continuar ali.
Eu não precisei ficar de pé, gesticular tal qual uma criança italiana desinibida, não precisei falar num tom alto o bastante para todo mundo compreender sem ruídos todas as minhas palavras, vírgulas e tampouco precisei respirar corretamente. Sentado, do mesmo lugar onde estava, quase sempre de cabeça baixa, eu pude ler e depois ouvir e ver as outras pessoas dividindo comigo seus olhares, seus contrastes.
Se algum amigo próximo me ler vai dizer que é mentira, mas isso vale apena para eventos oficiais com horário marcado mesmo. Outros fogem das minhas possibilidades 😁
Se mentalmente você respondeu a mim “em qualquer lugar”, sim, você está certo. Tá satisfeito? 😊
Amo as oficinas. E vejo nelas esse diferencial mesmo, um espaço seguro para se arriscar um pouquinho. Ah, e não estava na oficina, não ouvi a leitura em voz alta, mas adorei o texto espontâneo dos 5 minutos :)
Esse texto me fez lembrar de uma oficina que fiz um bom tempo atrás, em que a pessoa ia jogando uma palavra ou outra e a gente tinha que encaixar em um texto que escrevíamos na hora. Teve uma galera que fez com que uma palavra em si fosse pura poesia, inventando sentidos pra ela que me deixaram de queixo caído. Morri de vergonha de ler o meu, pq o que eu fiz com a mesma palavra foi fazer com que ela fosse algo dito pelo Cebolinha, só isso. Mas a galera deu risada e achou interessante que eu levei pra esse lado, pq ninguém mais tinha pensado nessa possibilidade. Depois disso, perdi a vergonha e assumi que eu faço as minhas próprias besteiras, e isso é mais que o suficiente.
Mais um ótimo texto! Adorei 😊