A primeira vez que assisti ao filme Beleza Americana, eu me encantei pela cena do saco plástico rodopiando ao vento. Algo banal, cotidiano, transformado em poesia visual.
Na cena, o personagem interpretado por Wes Bentley apresenta a filmagem que ele produziu, da dança da sacola, enquanto conversa a sós com a garota (Thora Birch):
“É a coisa mais linda que eu já vi em toda a minha vida.”
Uma sacola rodopia pelo chão, o vento faz ela dançar com outras folhagens e em background, o cara manda um papo poesia que transcende para a garota. No final, ela pega em sua mão, os olhos marejados e depois o beija. Isso me cativou não pelas palavras do sujeito, mas por criar em mim esse imaginário que com as frases certas eu poderia conquistar alguém. Sim, cada um entende como quiser, e foi só isso que captei quando assisti poucos meses depois dos estadunidenses terem estocado alimentos para o bug do milênio que nem rolou.
Naquele momento da minha vida, aquilo fazia todo o sentido. Eu estava iniciando o curso de Informática na Universidade Católica do Salvador (UCSal) e a cena inteirinha batia muito certo com minhas crenças míopes e datadas. Eu me achava muito profundo, apesar de apenas repetir frases e pensamentos de outras pessoas. Por algum motivo, aquela sacola plástica me trazia uma sensação estranha — uma mescla de beleza e tristeza que eu ainda não sabia como nomear.
Culpei a falta de grana por não ter uma câmera e não por nada daquilo em prática. Me faltava, na verdade, perspectiva. A virada aconteceu meses depois, quando conheci uma pessoa que, sem querer, me mostrou que o mundo era bem maior do que sacolas dançando ao vento ou frases pseudo-intelectuais ditas no momento certo para a pessoa certa.
Essa grande figura baiana também vai ler esse texto que, na verdade, é em sua homenagem, já que foi o estopim de grandes coisas em minha vida na virada do século.
Ele só usava preto. Todos os dias. Um calor dos 600 demônios na capital baiana, e lá estava ele, batendo ponto na UCSal com sua camiseta básica, preta. Até o dia que alguém, em tom jocoso, perguntou se ele só tinha camisa daquela cor no guarda-roupas1. Como se o seu armário fosse igual aos da Turma da Mônica.
Só de sacanagem, no dia seguinte ele apareceu com uma camiseta branca. No outro dia, mais outra, lisa, básica, alva como as espumas das ondas do mar. E assim ele seguiu, contrariando o estereótipo do roqueiro “cara mal”. Esse gesto, por mais que tenha sido apenas zombeteiro de sua parte, resumia bem quem ele era: alguém que não estava ali para agradar ou se encaixar, que fazia questão de ser autêntico, mesmo que isso significasse rir de si mesmo.
A culpa de eu participar ativamente do cenário underground de Salvador2 naqueles anos foi toda dele. Em casas de shows que precisávamos pedir licença e passar no meio da banda para acessar o banheiro e nas reuniões em casas de pessoas aleatórias encontrei o meu lugar numa cidade que, até então, só me oferecia espaços onde eu não cabia. Fiz amizades que perduram até hoje, vivi relacionamentos com e sem ajuda de papos poesia e, o mais importante, consegui finalmente dar nome àquele sentimento que misturava beleza com tristeza.

As peças se encaixaram quando conheci Wander Wildner3, mas especificamente quando ouvi “Eu Não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro”. Foi só aí que a minha vida, as sacolas que rodopiavam pelas ruas quentes de Salvador, as horas de busu que eu passava para chegar onde outros apareciam em minutos de carro, a luta diária para pagar os estudos enquanto outros nem se preocupavam com isso, passou a fazer mais sentido. E tudo se condensava na voz rouca daquele gaúcho que transformava melancolia em música.
“
Eu sempre tento e não consigo
Então às vezes quando a noite chega
Eu fico só comigo mesmo
E só me resta a saudade como companhia
Como companhia
Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro
Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro
Eu não consigo…
”
Quando concluí o curso não fiz festa de formatura. Peguei o dinheiro que tinha e dei entrada num Corsa 97, duas portas, sem ar condicionado e com uma barata que morava nele e foi minha companheira por bastante tempo, quase o suficiente para concluir o financiamento do automóvel.
Antes disso, num sábado, peguei todos os meus cadernos, apostilas, anotações e trabalhos acumulados ao longo daqueles exaustivos anos e joguei dentro de um vaso grande que tinha no quintal da casa dos meus pais. Risquei um fósforo e observei o fogo consumir o que restava daquele ciclo4.
Wander cantava o que eu evitava admitir. Não era nenhuma metáfora rebuscada ou uma alegoria de liberdade, mas sim um lembrete de que o caos da vida pode ser belo, feio, imperfeito. E tudo bem, porque a gente não precisa mesmo ser alegre o tempo inteiro. Aliás, é impossível.
Minha predileção musical nesses anos estava, como bem definia o Devotos do Ódio, na tríade formada por Punk, Rock e Hardocore. Nunca fui muito afeito aos gêneros obscuros do arroto metal ou dos que cantavam sobre sacrfícios animais e chuvas de sangue, por isso eu tinha Wildner como uma espécie de porta de entrada. Ele era o meu Reginaldo Rossi do Rock — com todo respeito ao Rei do Brega.

No início dos anos 00, nessa época mística em que a gente ainda parava para ouvir música, quando Wander Wildner largava, já no final, “Eu não consigo ser alegre como a Xuxa…”, porra, aquilo me pegava em cheio.
Me fazia rir, me fazia refletir. Fato: nem mesmo a Xuxa deveria ser alegre como a Xuxa.
O mais absurdo é que a pessoa que o questionou só ia para as aulas com camisas verdes e ganhou o apelido de Ervilha.
Já conhecia algo um pouco antes, no final dos anos 90, Dois Sapos e Meio, Lisergia, Inkoma (a primeira banda de Pitty), mas fui a shows esprádicos com a turma da escola, conhecer a fundo o cenário e participar assiduamente foi a partir da faculdade mesmo.
Sim, tem uma polêmica envolvendo ele que é meio recente e rolou tem poucos anos, mas não quis ser anacrônico nesse texto.
Eu só me arrependo de não ter filmado esse momento, acho que seria meu filme obscuro-obra-prima-jóia-oculta-do-cinema para apresentar apenas aos mais chegades. Eu realmente tinha ódio daqueles anos, foram exaustivos, tive que me virar em 20 para me formar, saía de casa 6 da manhã, retornava quase meia noite. Não fossem as amizades que fiz naqueles tempos, certamente não teria suportado.
não consegui descobrir em qual show foi a foto, depois vou olhar com mais calma 😂
O fascinante da vida é esta incrível diversidade de vivências que podemos ver ao lado (se tivermos olhos de ver ao vivo ou de ler depois!). Estive próximo do mundo do rock no final dos anos 70, início dos 80. E antes disso, fui seduzido pela literatura e pela música, a MPB, graças a um baiano de Ilhéus que foi trabalhar em Rondônia... Vida louca e boa!!