Qual grande história de vida você guarda como se fosse um pequeno tesouro oculto? Aquela que só é revalada no momento oportuno, a que te transforma instantâneamente em um verdadeiro milagre cósmico?
A carta +4 do jogo uno, o gol do seu time aos 53 do segundo tempo, o especial com barrinha completa no Street Fighter, o fatallity que arranca a cabeça de seu oponente. Aquela que você usa para quebrar o gelo em um encontro social, a mesma que seus amigos pedem para você contar (pela milésima vez) sempre que alguém novo surge no grupo.
Eu tenho várias, não por ser uma pessoa importante, mas porque estou nesse mundo para desafiar as leis da vida e até as religiões que gostam de nos cercear com milagres que nunca aconteceram. O meu é real, e hoje conto para vocês e deixo aqui eternizado para enviar o link sempre que precisar.
O menino que caiu
Tudo estava em câmera lenta. O asfalto se aproximava e, enquanto me lembrava da única aula de judô que fiz na vida, as pessoas no ponto de ônibus gritavam em slow motion:
— Ohhhh MEEEUU PAAAI! O ME-NI-NO CAAAAAAIIIIU!!
Só quem viveu os anos 80 pode entender toda a loucura que eram aqueles tempos. Cinto de segurança? Apenas quando passávamos por um Posto Policial Rodoviário nas estradas, e ainda assim, era só para agradar o agente. Logo em seguida, nos livrávamos daquele incômodo para poder seguir viagem com tranquilidade.
Segurança e prudência? Esses conceitos não existiam naquela época, especialmente para quem morava no glorioso condomínio Parque Júlio César, habitat dos 'outsiders' que ousavam estar no famoso e nobre bairro da Pituba em Salvador.
E só mesmo aqueles anos insanos poderiam explicar duas crianças, juntas, no banco da frente de um carro. Cinto? Volte para o parágrafo anterior. E por juntas entenda-se que não é de forma comportada, mas sim, uma empurrando a outra em busca de espaço e conforto, que poderiam ser encontrados no banco de trás ao lado da amiga segurança, todas ignoradas em prol de um acordo que não deveria ser quebrado.
Outra coisa que existia em abundância naquela época se chamava tédio. Era ele quem impulsionava as crianças a aceitarem qualquer esquema, por mais fuleiro que fosse, como aventura ou oportunidade de diversão/distração. Preciso falar tudo isso para acreditarem que aceitei — sem ter sofrido ameaças ou ter participado de qualquer ritual ou promessa — um incrível passeio até uma oficina de carros, onde o avô de um dos meus melhores amigos da época havia nos convidado para passear.
Já no elevador começamos a discutir para decidir qual dos dois iria no banco da frente. Como sempre confiei nas pessoas, aceitei quando ficou acordado que, na ida, meu amigo iria na frente. Quando a gente voltasse para casa seria a minha vez de desfrutar desse momento incrível.
Só que quando fui todo pimpão sentar no meu lugar de direito, o meu brother já estava lá falando que não ia sair de jeito nenhum, que o avô era dele e não sei o quê mais lá.
Até esse dia, situado ali no final dos anos 80, eu não era muito de desistir das coisas — isso só veio a acontecer anos depois, na oportunidade em que FISSUREI minha face depois de ter feito uma aposta de manobra com meu skate, história prum outro texto.
Das raríssimas vezes em que havia desistido de algo, foram das aulas de judô. Era muita mão de obra ficar puxando e jogando os coleguinhas no chão, os quimonos eram tudo sujo e fedido, se suava demais e, na primeira e única aula que fui, fiquei fazendo rolamento o tempo todo.
Segundo meu sensei, era preciso saber cair no chão antes de começar a lutar.
Pra completar, o fliperama do bairro ficava próximo da Budokan (a academia de artes marciais) que era bem famosa na época e era uma escolha melhor para meu futuro. Ainda mais quando se pensa que lutadores como os irmãos Minotauro e Minotouro (aqueles do UFC) saíram de lá. Deus me livre trocar minhas orelhas por dinheiro, fama e sucesso, quando podia ficar fera nos games (Spoiler: não fiquei fera nos games).
E como não era, ainda — tirando o judô — de desistir das coisas fácil, bati o pé firme. Eu vou na frente sim! Bradei e subi. Fiquei do lado da janela e, pelo visto, não bati a porta direito. Os carros naqueles tempos ainda não apitavam e nem te mandavam um notificação quando você não fechava, corretamente, alguma das portas.
Você já teve uma experiência de quase morte?
Muitas pessoas que se envolveram em acidentes ou participaram de momentos de quase morte relatam terem visto tudo em câmera lenta1 . Comigo e, anos mais à frente, com Neo em Matrix não foi diferente.
O organismo prepara o seu corpo para o pior. A descarga de adrenalina é mais alta do que minha pressão sanguínea vendo o Vitória defender escanteio e, seu cérebro, começa a registrar absolutamente tudo.
Outros cientistas dizem que, na verdade, é a sua memória que lembra de coisa demais, e tanta coisa aconteceu quando a porta do carro se abriu num dia de final de semana na Avenida ACM — sim, Antonio Carlos Magalhães, naqueles tempos o cabeça branca botava nome até nos cachorros da gente aqui em Salvador — que só mesmo em câmera lenta para minha mente conseguir lembrar ou explicar toda a sequência inacreditável de eventos.
A avenida ACM na época (e ainda hoje) era uma das mais movimentadas da cidade. Por sorte, neste dia o trânsito estava bem calmo e o carro estava reduzindo para pegar um retorno. Só que antes de reduzir completamente, ainda em movimento e estando numa velocidade razoavelmente alta, no empurra-empurra entre eu e meu amigo a porta se abriu e, como já diria a Bamda Mel (com M mesmo!):
E lá vou eeeeeeeuu…
Iô iô iô iô iôooo
Lá lá lá lá lá lá láaaa!!!
A porta se abriu lentamente e o chão olhou pra mim. Eu olhei para ele. No ponto de ônibus as pessoas estavam num movimento vagaroso das mãos indo de encontro às suas cabeças e não era ensaio de verão.
A primeira coisa que pensei é que iria, no mínimo, me quebrar em uns duzentos locais diferentes. Instantes antes de colidir no asfalto, a voz do meu sensei, da única aula de judô que fiz antes de abandonar, no que meu pai ficou putaço porque já tinha comprado quimono e pago matrícula e o primeiro mês (todos não reembolsáveis), assoprou dentro meu ouvido palavras de salvação:
— Rolamento. Rolamento. Rolamento. Encolhe o corpo assim. Isso! Gira, gira, foi!
E assim eu fiz. Ouvi um “POC”2 bem alto, mas talvez tenha sido algum pertence da turma que estava esperando seu busu na paz até uma criança ser ejetada de um Uno marrom cocô.
Nesta faixa de tempo, eles já deveriam estar no meio da frase “oh meu pai, o menino caiu” que gritaram. O chão tava muito quente e eu dei algumas voltas. Algumas não, muitas, até parar de girar.
Lembro de ter sentido minha mão queimando quando me apoiei para levantar. Há uns cinquenta ou oitenta metros mais a frente, o carro ainda tava parando, quase na curva. Tal qual figurante de The Walking Dead fui caminhando. Caminhando. Tipo aquela caminhada da vergonha em Game of Thrones, tá ligade?
As pessoas na rua voltaram a falar na velocidade 1.0 e eu com vergonha (?!) olhando pro chão. Um carro reduziu, o mostorista me olhou com uma cara de desespero e perguntou se estava tudo bem comigo. Eu nem consegui abrir a boca, olhei rapidamente para ele e voltei a olhar para o chão.
A única coisa que se passava na minha cabeça naquele momento era: Porra, minha mãe vai se retar comigo quando souber!
Não quebrei um osso sequer. Na primeira vez que resolvi escrever esse texto, percebi que minha vida foi uma prequência para Matrix e Corpo Fechado ao mesmo tempo. Só que apesar de ter escapado das fraturas, me ralei por completo. A quantidade de escoriações e roxos no meu corpo era incatalogável. Foi tanto que, antes de me levarem para casa, passei por uma sessão demorada de primeiros-socorros.
Foi a primeira vez que adultos aceitaram o pedido de uma criança nos anos 80: Mertiolate não!3
Escrito nas estrelas
O ano era 2011 e fui reencontrar esse meu amigo de infância no Parque Júlio César. Enquanto aproveitava para matar as saudades do lugar onde vivi toda minha infância, recebi uma ligação que parecia coisa do destino.
Eu e ele estávamos num boteco perto da praça do palito de picolé quando meu celular tocou. Atendi, naquela época a gente ainda usava celular para receber chamadas. Era o resultado de uma ação que fizemos em meu antigo blog para uma marca de biscoito. A gente venceu a promoção que iria nos levar prum carnaval inesquecível em Pernambuco, com tudo pago e em hotel 5 estrelas. Coisas da vida, já diria Kurt Vonnegut.
Ainda incrédulo com tamanha coincidência, ele aproveitou para me contar como foi o ponto de vista dele, que viu a porta se abrir e continuou dentro do carro vendo eu me espatifar no asfalto. Magicamente sem ter sido atropelado por nenhum outro carro.
— Meu avô. Marcio caiu.
— Foi meu filho? Quando? Que dia foi isso? — Como se fosse uma conversa qualquer, daquelas que a gente tem no elevador e fala no automático, o avô dele perguntou enquanto, sem pressa, reduzia a velocidade para fazer o retorno com o carro.
— Agora meu avô. Do carro!
Foi aí que ele freou com tudo e, desesperado, foi me acolher, perguntar se estava tudo bem, se não tinha quebrado nada. Tentar entender o que havia acontecido e, aposto, pensar como iria explicar aos meus pais quando me deixasse em casa.
Parecendo coisa do destino, como aquela lenda urbana do Besouro-Suco onde se você falar da pessoa várias vezes ela aparece, o avô de meu colega passou na frente do boteco nesse dia em que estávamos relembrando dos velhos tempos.
Ele ia seguir direto, mas meu amigo o chamou e ele parou para conversar com a gente.
— Lembra quem é esse aqui meu avô? — Meu amigo perguntou.
Ele parou por um instante, coçou o queixo:
— Lembro, não.
Ele seguiu seu caminho, a gente mandou descer mas outra e já estávamos combinando como seria o nosso carnaval em Recife e Olinda com tudo pago.
Após uns três minutos, bem na hora que eu já tava prometendo que, agora, seria a minha vez de abrir a porta do avião pra meu brother cair, o avô dele surgiu do nada, quase gritando:
— Márcio! Seu nome é Márcio! Você caiu do carro naquela vez. Achou que iria me esquecer?!
Imagina Só
Contos, causos, ensaios e histórias com manchas de dendê. Aqui eu falo um pouco sobre Salvador, a Bahia e sobre minhas histórias também, que são as quais eu conheço (um pouco).
Pelo menos um texto inédito por mês.
Minha lembrança é realmente ter vivido tudo isso em câmera lenta. Ainda sinto o calor do asfalto quando lembro e tudo é muito vivo aqui dentro. Eu girando, as pessoas gritando, o caminho que fiz cambaleando e mancando até o carro
O barulho que o avô do meu colega também ouviu e me perguntou, quando voltei pro carro, deve ter sido meu ombro ou minha bacia, mas eu falei que tinha sido o meu tênis (?!) para deixarem eles tranquilos. Eu, até hoje, não gosto de dar trabalho, incomodar ou preocupar as pessoas e, naquele dia, não foi diferente.
Merthiolate, naquela época, ardia. Pra caray.