Eu desisti de me envolver com qualquer coisa relacionada a arte com apenas onze anos. Parece muito cedo para decidir sobre seu futuro, mas eu tinha motivos de sobra para isso.
Enquanto Fernando Collor andava na ponta dos pés no Planalto Central, se esgueirando pelas sombras para confiscar as poupanças de todos os brasileiros, eu estava voltando de mais um dia de escola olhando para todos os cantos e becos, analisando como iria conseguir catar uma boa quantidade de palitos de picolé na rua para fazer um porta-retratos pro trabalho da aula de artes que valia nota.
Depois de minha pequena cabeça pipocar ao descobrir que se vendiam palitos de picolé (novos e limpos) em armarinhos — ainda existem armarinhos onde você mora? — eu montei o meu porta-retratos com toda a maestria que uma criança, que era para ser canhota, mas como era errado ficou destra à pulso, poderia conseguir.
O primeiro choque de realidade aconteceu no dia em que fomos entregar nossos projetinhos artísticos. Enquanto o meu estava com alguns palitos tortos, intercalados entre lisos e manchados e com cola de péssima qualidade sobrando em todos os cantos, os dos demais colegas poderiam ser facilmente vendidos nas lojas do Shopping Iguatemi.
“Não é possível, eles devem ter comprado”, foi o que pensei na hora.
Os meus pais mentiram quando deram a opinião sobre o meu trabalho. Ou talvez faltasse a eles um conhecimento maior do mundo lá fora e dos trabalhos dos meus demais colegas. Impecáveis, lindos, perfeitos.
Eu só vim entender qual era a de mesma na última unidade escolar.
O trabalho final era para se criar uma maquete sobre o tema proposto para nossa turma: Poluição. Eu criei uma paródia musical baseada no grande sucesso de Ricardo Chaves para compor a apresentação do trabalho e cantei — até hoje não sei com que coragem — na frente de todo o colégio:
"É o lixo, é o lixo,
vou te devorar,
poluição eu sou."
E isso não foi a pior coisa que me aconteceu. O momento de grande virada no qual eu decidi, pela primeira vez, nunca mais me meter a artista foi quando uma querida professora divulgou as notas finais.
A minha maquete era um compensado de isopor com meus carrinhos e caminhões de plástico colados. Desenhado com cola colorida tinha um rio e eu fiz uma indústria com as paredes — recortadas do próprio isopor com faca de serra — presas com palitos de dente, pintadas a hidrocor, de onde saíam canos (canudos que lavei cuspindo água) deixando dejetos no rio. Para completar, eu achei uma boa ideia colar um pouco de areia que peguei na rua. Nem preciso dizer que a maior parte dela preferiu ficar na minha farda do que na maquete.
Eu já imaginava que não estaria entre os melhores. Decidi que não iria me comparar aos demais e suas maquetes compradas no mesmo lugar onde arrumaram os porta-retratos. Ou isso, ou eram todos talentosos, algo que eu comecei a adicionar em meu vocabulário naquele ano.
A professora, que na semana seguinte iria me dar um helicóptero do Comandos em Ação no Amigo Secreto (deixando claro antes de me entregar que havia lhe custado uma pequena fortuna), disse que meu conceito estava maravilhoso e que eu havia realizado um ótimo trabalho.
Meus pais devem ter aparecido lá e obrigado ela a falar isso, aposto.
— Maiana!
Ela nem levantou a cabeça. Depois de um momento que julgou ser suficiente, ela ajeitou seus óculos pesadíssimos e olhou para a menina pimpona que vinha carregando sua maquete impecável. Até grama sintética tinha. Sabe aquelas maquetes que ficam em Shopping de Luxo apresentando algum lançamento imobiliário? Com direito a pessoas sorridentes acenando da varanda e outra no jardim gigante e florido passeando com um cachorro vira-lata feliz pra porra?
Era essa a maquete da menina. Se eu tivesse que fazer hoje, com todo o conhecimento que possuo, com internet e o caralho aquático todo pra me ajudar, eu jamais chegaria próximo àquele trabalho esculpido por Deus ou Oscar Niemeyer.
— Maiana. Lindo. Perfeito. Nota 10!
Maiana sorria olhando para todos na sala, mas antes dela voltar para seu lugar, minha professora, na vanguarda do deboche complementou:
— Nota 10 para a sua mãe. Avise a ela que ficou excelente, dê meus parabéns a ela quando chegar em casa.
Foi exatamente nesse momento que eu desisti de ser artista. Assim que terminei de rir.
Não teria como competir com a mãe de Maiana, ou os pais de meus amigos. Eu tinha apenas onze anos e duas mãos destras em braços canhotos. O mundo era cruel demais. Nada do que eu fizesse seria o melhor, ou estaria ao menos entre os aceitáveis.
Passei toda a adolescência sem sequer rabiscar o caderno do colégio. O máximo que fazia era colar recortes de revista e fazer minhas próprias capas. Fazia colagens misturando assuntos diversos. Skate, praia, futebol, música, berimbau, bichos.
Contei toda essa história, que se você chegou até aqui deixarei a minha nota 10 para você (e seus pais também, se assim você desejar ou permitir) apenas para dizer que eu passei muito tempo me comparando aos outros e abandonei um hobby que eu sempre amei apenas porque o mundo lá fora é cruel e lotado de pessoas melhores que a gente em pelo menos um par de coisas.
Esse sentimento piorou exponencialmente quando a internet chegou. Meus traços terríveis e sem técnica não são páreos para o que a gente encontra online.
Só que eles não precisam ser melhores, a gente não precisa nascer pronto, ou ser irmão de Maiana, mas eu só descobri isso agora. Nesse final de 2023.
Eu desenho. Tu desenhas?
Uma chavezinha virou em mim nos últimos meses. Eu voltei a desenhar. E desenhar muito. Muito mesmo, num nível que às vezes esqueço que existem pessoas ruins nas redes sociais e comentários lamentáveis em canais de notícia.
Eu desenho todos os dias, toda hora livre que eu tiver. Na mesa do computador em meio a uma reunião, na mesa de jantar, no sofá e agora até na rua.
Fiz um caderninho minúsculo, com a largura do celular para poder me apoiar nele. Em qualquer momento que eu estiver de bobeira, saco ele do bolso e faço algum rabisco. Não tem tema definido. As linhas tortas vão se encontrando. Algumas vezes eu gosto, outras não, mas essa não é mais a razao pela qual estou desenhando.
Ainda continuo olhando outros desenhos de artistas e pensando como eles conseguem fazer tantas coisas preciosas. Estou numa fase de entrar no Pinterest e procurar ideias aleatórias e tentar replicar. Tenho enviado para os artistas os meus desenhos inspirados. Quase ninguém responde, mas não importa.
Sabe o que importa? É que passo um tempão feliz. Seja colorindo, seja destruindo algum traço oportunamente bem feito que até tinha potencial, mas eu estraguei bem no final. Eu não paro, eu vou para o próximo, e o próximo e o próximo.
Tenho acessado menos as redes sociais, o mundo voltou a ficar colorido, e eu em paz. Meus desenhos não valem mais notas, talvez seja esse o segredo. Ainda que publique nas redes um ou outro, não é nem metade do que tenho feito.
Não sei quando eu vou desistir novamente do mundo das artes, mas se isso acontecer não vai ser por conta de existirem milhões de pessoas a cada segundo produzindo coisas mais bonitas do que as que eu faço.
Ou escrevendo textos mais bem produzidos que os meus.
Eu sento e escrevo. Esqueço. Edito, apago, reescrevo.
Um dia, quando não aguento mais olhar para a cara dele, eu publico. Não é no dia que o Substáquio quer. Não é em áudio, nem em vídeo.
É um texto, apenas um texto.
Meu último caderno de desenho
Fechei três cadernos de desenho nas últimas semanas, o mais recente (completo) foi esse que está no vídeo (chupa Substáquio!) que deixo logo abaixo para quem tiver de bobeira e quiser dar uma olhada.
Apesar de estar em uma ordem, tem desenhos melhores antes, piores depois. O processo de aprender qualquer coisa não é tão regular como as pessoas teimam em nos vender.
E estou começando a aceitar algumas coisas que faço como minhas. Vou me encontrando a cada dia que passo longe das telas e dessas brigas e questões que só existem nelas.
Mais alguns rabiscos
Deixarei mais alguns desenhos na galeria aqui e para quem quiser me seguir nas redes onde só posto meus desenhos, sem pressa, deixo os links também logo abaixo.









Um abraço no coração de cada um que me segue, me lê ou perde alguns minutos acompanhando minha terapia com arte.
E você? O que faz para descansar essa mente? Comente aí :)
Amei demais seus desenhos!
Na época da faculdade eu tinha que fazer diário gráfico, todo dia um desenho, gostava muito mas foi um hábito que só durou aquele tempo. Recentemente mais de 15 anos depois tentei retomar os desenhos para tentar ficar longe das telas pela manhã (minha ansiedade não me deixou ficar longe por muito tempo).
Muito bom passar um tempo desenhando sem se cobrar por um resultado perfeito ou que vai ser algo para ser mostrado ao mundo né.
Amei seu texto também, me identifiquei muito sobre ser tornar destro de forma forçada, lembrei de quando estava na primeira série e passava parte do dia com minha avó e como eu gostava de tentar escrever com q mão esquerda mas logo minha tia vinha me corrigir dizendo que o certo era com a mão direita.
Me identifico demais com sua narrativa, Marcio! Sabe que achei que nunca pudesse ser artista, pois a minha mãe já era. Artista plástica e eu, com desenhos que não chegam nem aos pés dos seus. rs
Hoje me encontrei na escrita, ainda assim, seguindo o conselho da Julia Cameron e seu livro O Caminho do Artista, passei a usar a tinta e os pincéis que herdei da minha mãe para me distrair.
Fico pensando em como há a arte e o mercado de arte e como são coisas diferentes e como elas nos atrapalham imensamente.
Obrigada por seu texto and eu amei seus desenhos - para mim, arte é sobre uma expressão autêntica e isso eu vejo sobrando por aqui.
Beijos