Sentei no banco da praça com meu caderninho ainda no bolso. A vergonha de sacá-lo e começar a rabiscar era maior do que o medo de ser roubado, embora eu não tivesse nada de valor para ser subtraído. O que importava, naquele instante, era dar o primeiro passo para me tornar um artista urbano1.
Milagrosamente era um daqueles raros dias em que Salvador, essa sonsa, não nos fervia vivos. Uma brisa da orla marítima fazia as folhas na Praça dos Cachorros dançarem. Fiquei de trazer os meus e vendo alguns ali, soltos e correndo, me pinicou uma tristeza no peito por não fazer disso uma rotina com os dois enviados do sétimo selo que tenho em casa.
Esse seria um erro a ser corrigido num futuro próximo, já que estava ali numa missão ímpar: Desenhar ao ar livre. Seguir uma das primeiras lições que aprendi no livro que me custou quase duzentos reais por ser importado e não ter versão nacional.
Lição número dois do “Urban Sketcher” - Saia de casa, sente numa praça ou num café e desenhe o que vê.
É lindo quando vemos nos filmes ou vídeos no Youtube as pessoas saindo nas ruas para escrever ou desenhar. Sentar num café e abrir o seu Macbook Pro é instagramável pra caralho, mas em Salvador é pedir pro dono2 levar sua a máquina embora.
Um café seria uma opção mais segura, mas o único próximo de onde moro utiliza um conceito bem vanguardista (para uma cafeteria): Só abre a partir das 9:00hs da manhã. Por toda essa conjuntura, somando-se a isso a minha vergonha de existir socialmente, decidi chegar bem cedo na praça a fim de evitar plateia.
Mesmo sem uma multidão ali, a verdade é que desenhar em um local público é muito intimidante. Uma infinidade de coisas passavam na minha mente e o meu “sketchbook” nem tinha visto a luz do sol ainda.
Imagina só, faça esse exercício comigo:
Você acorda cedo pra comprar pão e, no caminho, se depara com um sujeito levemente arqueado, com uma barriga fogosamente provocante, de boné de loja esportiva — o mais barato — sentado com um caderninho e caneta em mãos. Claro, só pode ser um assassino em série ou alguém que está sendo procurado no jornal da Tv Bahia às quarta-feiras, o dia municipal dos desaparecidos em Salvador.
Infelizmente a praça tinha menos cachorros do que crianças e adultos que já nem se lembram mais o que é acordar depois das seis da manhã. Onde estavam os pais de pet? Essa pergunta eu mesmo respondi, eu era a própria resposta. Eles estavam negligenciado a criação de seus animais domésticos que só serviam para sair em vídeos curtos engraçados.
A cada minuto que passava mais gente ia chegando, era a ordem natural de um dia de Sábado na cidade. Quando eu tive a certeza que estava sendo totalmente ignorado, puxei meu caderninho estiloso do bolso e abri na segunda folha. Sempre guardo a primeira mais pra frente, um tempo futuro onde terei a habilidade que eu julgue necessária para desenhar algo que seja digno de uma primeira folha. Ou seja, nunca.
A real é que eu estava ali para fazer apenas um esboço da minha arte. O desenho tem que ser finalizado mais tarde, essa é lição sete, se não me engano. Eu já tinha meu alvo em mente, era um prédio antigo e estreito que ficava ao lado de dois condomínios imensos e que pareciam o espremer ali. Como se ele fosse uma fenda temporal de um tempo antigo e quentinho, sabor Banana Split.
Comecei a rabiscar traços leves e quase invisíveis. Essa era uma manha que aprendi com alguns desenhistas profissionais que dão dicas no Youtube. Você vai com sua caneta leve e rabiscante traçando intenções e, mais a frente, você pode engrossar as linhas e mostrar o caminho.
As linhas não devem ser muito retas, nenhuma arte fica “viva” com linhas precisamente retas. Comecei meu desenho — ou melhor, meu sketch — pelos contornos do prédio antigo. Fica mais chique e parece arte quando a gente usa termos gringos. Os rabiscos estavam ganhando vida e eu me sentia radiante naquela amanhã. Nem ouvia mais os cachorros latirem.
Depois de terminado os contornos era hora de adicionar alguns detalhes. Não todos para não carregar muito a minha obra de arte. Umas janelas aqui e ali, um cano torto e saliente saindo da lateral e mais algumas simulações de rachaduras e defeitos que nem existiam, mas que deixaria tudo ainda mais vivo. Um portão gradeado, alguns traços tortos para simular as árvores ao redor e uma longa reta que se perdia para além da página manifestaria um dos condomínios na mente de quem visse a versão final do meu projeto.
Pronto, era isso. Eu havia me tornado um artista urbano. Quando chegasse em casa, após um tempo de introspecção, iria escolher minha paleta de cores, pintar — primeiro com as tintas mais claras — e sombrear todo o meu esboço. Transformando aquela forma decadente em Mum…
A última etapa era a mais simples, mas uma das mais importantes. Divulgar no meu Instagram e aguardar a glória de algumas dezenas de likes, comentários e até pessoas duvidando que havia sido eu mesmo que criei aquela representação mágica de um canto esquecido do meu bairro. E se eu deixar uma assinatura ilegível no canto, num ângulo de 43 graus (precisamente) eu poderia declarar como arte.
Só que tudo isso ainda tinha que acontecer num tempo futuro no qual minha mão, essa desastrada que quebra copos e derruba tudo em casa, obedecesse a minha mente. Naquele instante que ainda estava ali, sentado na praça, a verdade é que tudo parecia muito tosco e amador. Confesso apenas para vocês aqui, não espalhem.
Agarrei-me às últimas páginas do livro do Urban Sketcher Professional, onde o autor deixa claro que o que vale mesmo, no final de todo esse processo, é a experiência de estar fora de casa fazendo arte. Um escapismo para nossas prisões domiciliares, a cura para todo o mal das redes sociais recheadas de pessoas ruins que surgem em nossas telas e que a gente preferia nunca ter conhecido e até mesmo para aquela voz interior que nos impede de seguir adiante e concluir nossos projetos e sonhos.
O lúdico urbano em seu estado mais puro. Uma forma bonita de se dizer que o que vale é a jornada, aquela frase que todo mundo já leu ou ouviu em algum lugar. Particularmente nunca concordei com ela, mas usaria esse mantra em minha defesa se preciso fosse.
— Tio.
Ouvi uma voz mansa vindo de algum lugar, mas olhei ao redor e, assim como o Esporte Clube Vitória na Série B, não via ninguém na minha frente.
— Tio? Isso é um foguete, né?
Uma garotinha estava bem atrás do banco onde estava sentado — aparentemente a mais tempo do que o recomendado pelas leis anti-stalker que ainda não foram escritas, mas deveriam ser — ao lado de sua mãe que fixou os olhos arregalados, diretamente pra mim, como se tivesse pedindo deculpas pelo que a sua filhinha tinha acabado de falar. Sabe como é, nada como a pureza da resposta das crianças.
— A ponta, as asas, o cano onde vem o fogo e aqui as fumaças.
Olhando bem, percebi que realmente minhas árvores se pareciam mesmo com nuvens ou fumaças, no chão.
— Sim, é um foguete — respondi com um sorriso.
Fechei o meu caderno que comprei na Shopee e tomei meu rumo de volta ao calabouço de onde nunca deveria ter saído.
Bom, o que vale mesmo é a jornada.
✏️ Meus rabiscos
Durante a pandemia decidi fazer um curso de desenho, mas hesitei em compartilhar meus trabalhos online, principalmente o projeto final. Vendo as criações dos outros alunos, parecia que eu ainda era um amador (e dos bem medíocres) no meio de tantos profissionais.
Passei mais de dois anos sem coragem de concluir essa última etapa, mas após receber alguns estímulos, decidi superar a insegurança e postar meu projeto. Em pouco tempo, recebi um feedback surpreendente de uma colega do curso. Além de apreciar minha iniciativa, ela elogiou alguns dos meus rabiscos que, depois dela ter comentado, até pareceram mais bonitinhos.
Será que é isso que falta na internet de hoje? Projetos amadores, de verdade? Uma maior presença de coisas em diferentes estágios e não apenas uma curadoria do melhor, do melhor, do melhor?
Não sei, não tenho essa resposta, mas o que posso dizer é que passar alguns minutos escrevendo ou desenhando, diariamente, tem me deixado mais tranquilo, feliz e mais distante dessas distopias em forma de redes sociais.
Se quiser, você pode ver o vídeo do meu projeto final logo abaixo:
E aqui eu tenho um Pixelfed onde vou postar cada desenho da minha evolução que vai demorar de acontecer, mas tá fluindo.
Sem pressa, sem cobranças.
Um cheiro ou um abraço, o que você preferir. Podem ser os dois. 😁
Urban Sketcher tá mais para desenhista urbano do que artista, mas enfim, achei mais bonito assim. Sketches seriam esboços de desenho. Esbocista Urbano seria uma tradução ideal para um assassino em série numa praça logo cedo fingindo que vai desenhar, pensando bem.
O Dono é uma entidade soteropolitana que você ainda não conhece, mas é dona de seus pertences. Se você sai na rua com algo de valor, as pessoas dizem para tomar cuidado pro “dono” não levar, ou seja, algum furtador de objetos (attenzione) ou um bandido que pode te surpreender e soliciar a subtração dos itens de seu inventário pessoal.
Já estou te seguindo no pixelfed ! :)