Olhos vermelhos, demônios e outras verdades que inventei
De piscinas a calabouços, entre cloro nos olhos, mordidas não dadas e histórias que ninguém acreditava.
Entrei na natação pela primeira vez para me curar de uma asma, eu tinha seis anos de idade. O professor, raiz (como os incels gostam de falar), me largou numa piscina adulta sem boia nem nada e fez um sinal de perainda para minha mãe que, mesmo sem saber nadar, iria pular com roupa e tudo pra me pescar. Engoli dois litros de água, afundei até quase bater a barriga no fundo e achei que nunca mais voltaria à superfície.
Em pouco tempo, a asma sumiu. Não sei se por conta da natação ou o quê, mas o fato é que eu lembro muito bem deste dia até hoje. Acho que é trauma que chamam, né?
Voltei a frequentar aulas de natação no início de minha adolescência, não para curar alguma coisa e nem por ter desaprendido a nadar, a ideia era mais a de preencher o tempo — um conceito quase impossível de se explicar no século XXI — e incluir alguma atividade física na minha rotina que se resumia a escola, casa, escola.
Eu detestava usar aqueles óculos de natação e, todas as vezes que eu voltava das aulas, minha mãe, sempre, me perguntava se eu estava fumando maconha. Na cabeça dela e na de ninguém era concebível que alguém preferisse irritar os olhos com cloro a usar aqueles óculos por mais desconfortáveis que eles fossem. Eram muito apertados, aquela borracha me comprimia os ossos, irritava a pele. Não, eu só pulava na piscina e foda-se. Os meus olhos, no caso.
Minhas aulas eram numa casa no bairro de Itapoan. Eu saía de bicicleta todas as segundas, quartas e sextas para nadar. Seguia estritamente as recomendações do professor, um ex atleta paraolímpico baiano, tomava uma chuveirada; me secava; guardava as coisas numa sacola daquelas que fecham puxando um cordão; voltava para casa pedalando.
Era tudo automático, até a minha risada ao responder a minha mãe dizendo que sim, estava fumando um morrão fumegante e depois me molhava apenas para fingir que tinha ido nadar.
Tudo ficou pior no dia que me atrasei um pouco e retornei com uma caixa preta debaixo do braço. Uma que tinha um dragão, mas que ela julgou ser o próprio Satanás. Maconha era um problema contornável, agora, invocar demônios já era demais.
Meu pai não auxiliava muito em minha defesa também. Para ele, ao invés de perder meu tempo em casa, eu deveria estar por aí MORDENDO BEIÇOS — uma metáfora sutil que ele utilizava para o florescer da juventude.
Beijar, namorar ou até mesmo morder alguém parecia mais distante do que qualquer um dos Reinos de Forgotten Realms, um mundo mágico cheio de tesouros ocultos e perigos incalculáveis. Me esconder em histórias que inventava, com reis insanos, calabouços infinitos e monstros que se esgueiravam em becos mal iluminados, era algo que me movia ali em meados dos anos 1990.
Salvador, nessa época, era um deserto para quem gostava de RPG. Enquanto os poucos colegas que havia feito no glorioso bairro periférico do Alto do Coqueirinho evitavam o jogo por questões religiosas, meus primos e eu improvisávamos aventuras usando o pouco que tínhamos à nossa disposição.
Tudo isso mudou quando abriram a Arkana, a primeira loja de RPG da capital baiana. Ela ficava no bairro turístico da Barra. Era longe que só a porra da minha casa e os atendentes eram tão simpáticos quanto um portão de cemitério. Grossos que só.
Descobri, quase duas décadas depois, que minha “cara de pobre”, meu figurino de pagodeiro (pagode baiano, swingueira), era o problema. Eu vivia na praia, tinha um bigode que se mexia sozinho, era magro que nem uma vara de pesca e nunca andava com roupas de marca. Para completar, usava uma daquelas correntes de cordão com um pingente que descascava fácil comprado nos camelôs. O shape perfeito de quem, com toda a certeza, deveria swingar e descer até o chão, chão, chão.
Os garotos que cuidavam da loja, fora o preconceito intrínseco da sociedade baiana, só usavam roupas pretas e eram metaleiros do mal. Fãs de Iron Maiden, Sepultura e Slash. Eu, com meu estilo Parangolé Místico era, basicamente, um NPC1 indesejado naquele ambiente.
Apesar de tudo isso, a Arkana era um templo para mim. Eu juntava mesadas e depois salários de estágio e bicos que fiz instalando placas de internet ou sendo monitor de curso de Informática para comprar expansões, dados e miniaturas. Curiosamente não usei quase nada desse material para jogar com outras pessoas, mas foi uma época que escrevi tanto que precisei comprar classificadores para ir guardando tudo.
Enquanto o pessoal da escola mordia beiços, inclusive dentro da sala de aula nos intervalos, o que me obrigou a procurar outro local para me esconder no horário da merenda, eu criava reinos mágicos e narrativas que me salvaram das ilicitudes que minha mãe achava que eu praticava religiosamente às segundas, quartas e sextas à tarde e também de um mundo que parecia não me querer por perto. Seja pelo jeito que eu me vestia, falava ou me comportava.
O mundo sempre foi esse lugar cruel, onde tentam nos encaixar em uma só verdade. Eu jogava o dado de vinte faces e um cenário diferente se abria: Um dia eu era um nerd solitário que criava mundos invisíveis, no outro, suspeito de fumar maconha ou invocar demônios no meu quarto. Eu nunca tirava o acerto crítico, aquele que me faria ser a pessoa que todos queriam, destemido, mordedor, com um milhão de amigos.
Algo diferente acontecia comigo, nisso meus pais estavam certos. Só que não era nada de outro mundo, nem místico, nem subversivo. Era só a minha vontade de escapar de um roteiro que parecia ter sido previamente escrito para mim. Eu aguardava pelos ventos da mudança como o Vitória aguardava por um título nacional.
Nunca tive carisma nem tampouco a extroversão mínima necessária para ser um metaleiro mal-encarado ou um virtuoso da swingueira da Bahia, muito longe disso. Eu criava os meus próprios mundos e deixava o jogo da vida rolar com seus dados viciados e suas cartas marcadas.
Rodopiava sem direção, aguardando que um dia o universo iria me agraciar por eu ser do bem. Eu tinha essa fé que coisas boas aconteciam com pessoas boas, mas isso é só mais um baratino que nos contam, para ninguém se desesperar. Essa fé que o vento vai soprar na nossa cara, sem que a gente precise abrir alguma janela.
Não que também não tenha alguma verdade nessa fé, afinal, foi dessa dança desajeitada que eu me encontrei, não naqueles anos, que foram terríveis. Não mordi quase nenhum beiço, infelizmente não conjurei nenhum demônio, sequer risquei um pentagrama ou acendi velas. Em determinado momento, quando cansei de esperar algo do universo, eu apenas segui fazendo minhas coisinhas. Porque eu gostava, porque me sentia bem.
Viver é meio parecido com uma sessão de RPG: você se prepara, rola os dados e, às vezes, saem números medíocres. O segredo está no que você faz com os resultados — na história que você constrói, mesmo quando ninguém está olhando.
Comecei esse texto num caderno vermelho que meu dog carinhosamente mordeu a ponta. No meio dele, eu me perdi numa história que surgiu, de uma pessoa que fazia um sinal para mim enquanto atrevessava a rua no caminho para a Arkana. Daí surgiu um conto que nunca terminei, mas tive uma ideia para terminar de escrevê-lo e resolvi usá-lo como o meu primeiro de 52 contos que vou escrever no ano. Um por semana.
Escapismo é bom, mas só isso também não resolve de porra de nada, viu, miséra? Nessa época eu jogava bola com os Testemunhas de Jeová, andava de bicicleta por toda a cidade, vivia na praia torrando no sol e pegando jacaré (não era o dançarino do Tchan, eram as ondas).
2025 vai ser o ano das newsletters (ou do podcast)
Sombras, Fantasmas e Dois Charutos Fumegantes vai entrar em processo de revisão, meados do ano devo ter novidades sobre meu livro jovem adulto de fantasia sombria :]
NPC - Non Player Character: Personagem não jogável, aqueles ‘bonecos’ que servem apenas para mover as histórias, mas não são nenhum dos principais, ou vilão, ou alguém que valha tanto a pena que mereça alguma descrição mais detalhada.