A inspiração para o texto de hoje veio de uma publicação minha antiga em uma Revista Digital que participava e que não existe mais. Ele revela de onde surgiram as minhas primeiras histórias e quem foi a pessoa responsável por elas. Comento também sobre um apelido que tinha quando criança e que eu me identificava muito com ele.
Eu já tinha onze anos quando minha mãe me ensinou a datilografar em sua Ollivete verde. Aprendi a trocar a fita quando a tinta secava e a realizar a manutenção adequada para que as hastes, que esmurravam o papel sem piedade, não emperrassem.
Antes de escrever histórias à mão e muito antes de sequer eu sonhar em ter um computador, datilografei minhas próprias versões da coleção de contos infantis que lia quando criança. Fiz também alguns trabalhos de redação para o colégio anos depois, mas os primeiros enredos que eram fruto da minha imaginação surgiram quando conheci o mundo dos jogos de interpretação de papéis. A tradução, ainda que certeira, não dava tantas pistas sobre o que era (à vera) um Role Playing Game (RPG), o que não era ruim, já que se tornava um convite a se falar mais sobre a proposta da brincadeira.
Eu era invisível na escola tal qual um ser oriundo de reinos fantásticos. Não era tão mané a ponto de quererem me bater ou roubarem minha merenda, e nem tão descolado a ponto de me notarem. Sentava nas últimas filas, não era convidado para jogar futebol ou vôlei nos intervalos, dormia na carteira e só acordava quando ouvia meu nome durante a chamada. Presença. Esse foi o meu apelido por muitos anos, afinal, era só o que fazia no colégio, marcar presença.
A Ollivete de minha mãe ainda estava funcionando quando eu peguei minha bicicleta – cuja marca não vou explicitar aqui uma vez que se tornou um nome proibido nos dias atuais – e fui até o Unimar de Itapoã1. Olhando para o chão com medo de encontrar alguém que me conhecesse, caminhei até o corredor onde ficavam todos os itens sem um lugar melhor para ser exposto no supermercado. Conferi se o preço ainda era o mesmo que tinha visto umas trinta e sete vezes. Num impulso, peguei uma caixa preta com um dragão vermelho gigante e a coloquei debaixo do braço. Rumei em direção ao caixa, puxando um maço de notas emboladas de um bolso dentro da minha bermuda de surf para fazer uma compra que estava destinada a mudar minha trajetória dali em diante.
A caixa não era muito grande e nem pesada. Na frente dela, diante da criatura que abria a boca mostrando dentes afiados, havia um sujeito com uma capa de algum tecido grosso, mas esvoaçante empunhando um machado (só depois de estudar os manuais descobri que o nome correto da arma era alabarda). Comparado com o dragão, ele era muito pequeno. Como alguém poderia vencer uma criatura tão monstruosa como aquela? Foi essa pergunta — que a capa do jogo, sabida toda, deixava no ar sem resposta — que me fez mergulhar em mundos cheios de monstros, magias e masmorras para o desespero de meus familiares que recebiam um sorriso amarelo cheio de dentes tortos como resposta todas as vezes que me perguntavam sobre namoro.
Depois de jogar as aventuras iniciais já prontas, comecei a escrever minhas primeiras histórias. Datilografava por dias e dias aventuras que nunca iria jogar. Escrevê-las era mais divertido que rolar dados estranhos numa mesa para conferir tabelas, fazer cálculos e apagar números escritos em lápis mal apontados.
Da última vez que visitei os meus pais, olhei algumas coisas antigas minhas que ainda estão lá guardadas. Entre fotos, dados com faces apagadas e testes com boas notas, tinha um bolo de papéis com grampos enferrujados. Eram as minhas primeiras histórias. Com a tinta já esmaecendo, mal dava para ler o que tinha datilografado no final dos anos 1990.
Com alguma dificuldade, consegui ler um trecho em uma folha amarelada que ainda estava legível. Transcrevo abaixo.
“Vinte arqueiros, doze anões e quinze magos. Nenhum deles conseguiu derrotar o gigante vermelho. As paredes das casas estavam escuras, uma mesa no centro de uma delas ainda chamuscava tal qual uma fogueira morrendo. Seria o fim do Reino de Lovenlord e os poucos que estavam ainda de pé, se abraçavam como se fosse a última vez. Atrás da praça central surgiu uma luz fraca, quase não dava para ser vista. De repente, toda a atenção voltou-se para ela. O clarão foi aumentando, aumentando… Até uma criança ser vista. Ninguém sabia de onde ela surgiu. Ela teve uma vida triste por ser invisível, mas finalmente encontrou o seu destino: Salvar a cidade que nunca tinha notado a sua existência. O brilho ofuscante cegou a criatura que voou em retirada. Os moradores se deram conta que poderiam se abraçar outra vez, aquele não seria (ainda) o fim de Lovenlord”.
Nunca mestrei uma partida sequer nesse reino que criei. Tinha vergonha de chamar pessoas do colégio ou do novo bairro que morava para jogar. Talvez por ser uma criação que só fazia sentido para mim naquele momento ou porque naquele mundo, que só existia na minha imaginação e em algumas folhas de ofício que datilografei, eu pudesse ditar as minhas próprias regras.
Precisou passar quase trinta anos para me dar conta do poder que temos quando contamos nossas próprias histórias. Pouco importa se elas são bem escritas ou se possuem ideias inovadoras.
Elas são nossas.
O que pode ser mais importante do que isso?
🎲 Tesouros
Além de vários dados coloridos e algumas fichas de personagens em papelão da edição de Dungeons & Dragons lançada no Brasil pela Grow em 1994, eu resgatei da casa de meus pais também essa maravilha abaixo:
Você conheceu esses livros-jogo? Tinha que usar um dado (desses comuns mesmo de seis faces), papel e lápis. Ao fim de cada trecho, a depender de nossas ações e escolhas, a gente pulava para outro número. E assim a gente ia jogando o livro, tentando chegar a algum de seus finais antes de morrer. Era tipo um você decide para pessoas que não beijavam na boca. Eu adorava.
Atualmente estou preso em um game baseado no universo de Dungeons & Dragons, o badalado Baldur 's Gate 3. Já tenho quase 200 horas de gameplay e quando terminar vou jogar tudo novamente com outro personagem, apenas para poder trilhar outros caminhos e escolhas. Já era fã desde o jogo anterior lançado décadas atrás em quatro CDs e, portanto, se vocês sentirem a minha falta por esses dias já sabem onde me encontrar:
Em Forgotten Realms! 🧙🏽♂️
Usarei nome de locais sem dizer que é em Salvador a partir de hoje como reparação histórica por todas as vezes que encontro textos e pessoas se referindo a locais da capital de São Paulo como se lá fosse o Brasil e todo mundo tivesse a obrigação de saber nomes de ruas, bairros, estações e praças. 😚
Adorei a reparação histórica. Passarei a fazer o mesmo.
Abraços