Religiões Urbanas, Clones e Seitas Satanistas de Maconheiros Drogados
Qual era o seu clube nos tempos de escola?
Eu tinha dois amigos que eram muito fãs da Legião Urbana, banda que eu também curtia, mas não confessava em voz alta porque eles pareciam estar em outro patamar. Um deles se passava por Dado Villa Lobos e imitava seu jeito de falar, vestir e até a forma como o seu cabelo era penteado seguia a do guitarrista da banda. O outro era menos performático, mas uma vez acreditou que seria uma boa ideia queixar1 uma garota da sala com a letra da canção “Giz”.
Quando comecei a andar com essas duas figuras, eu tinha medo que, para ser aceito como parte do ‘grupo’, precisasse provar que era tão fã quanto eles e passar por uma avaliação com questões no estilo Cespe — aquelas em que uma errada anula uma certa — e, ao final, ficasse com pontuação negativa. Isso porque eu nunca fui muito interessado em procurar saber nome de integrante de banda, decorar todas as letras de todos os álbuns e, o mais grave: Eu não sabia cantar Faroeste Caboclo inteirinha.
No século passado, quando estava iniciando o que hoje chamam de ensino médio, apesar de eu não ser da Religião Urbana, esses dois se tornaram meus melhores amigos do colégio e, com isso, todos os nossos trabalhos apresentados em sala eram baseados na discografia da banda.
A gente interpretava as letras, criava versões em inglês para as aulas de língua estrangeira e, uma vez, os pais do sujeito que se passava por Dado Villa Lobos por tanto tempo a ponto dele mesmo acreditar, tomou um susto quando chegaram em casa. Ao abrirem a porta, eles deram de cara com a gente na sala de estar do pequeno apartamento em que moravam ao redor de mil velas, todas em cima de um tapete, ensaiando a gravação de um clipe para um trabalho de História. Sim, a música escolhida foi Índios.
A mãe do cover de Dado sorriu, ignorou a total falta de segurança e prudência e achou fofo. O pai dele fez a mesma cara que o meu fazia quando me via sentado no computador falando com pessoas estranhas no mIRC ao invés de estar na rua “mordendo beiços”, como ele sempre repetia.
“Parece um ritual macabro”
“É só um trabalho do colégio, meu pai”, meu amigo respondeu, passando a mão no cabelo da mesma forma que o outro Dado, o da banda, fazia.
“Hum... Venha cá, vocês não estão entrando em nenhum ritual de seita satanista de maconheiros drogados não, né?”
No dia eu fiquei sem graça, estava sentado defronte uma bateria feita de caixas de sapato e latas de tinta segurando duas varetas retangulares que eram, supostamente, minhas baquetas, mas hoje eu compreendo totalmente o pai de meu amigo Villa Lobos. Parecia mesmo um ritual com tantas velas espalhadas naquela sala com o agravante sombrio de estarmos com todas as cortinas fechadas e, apesar do exagero em maconheiros drogados, tinha mesmo cara e cheiro de seita.
Nem quando tentamos ser disruptivos ao fazer uma apresentação em sala de aula que consistia em uma versão, “ao vivo”, do programa de um tal de Ratinho (do obscuro canal CNT, que só dava para assistir com antena parabólica) escapamos de sermos monotemáticos. Um dos fax lidos — aos gritos de “Passem o fax!” — pelo meu amigo com um bigode falso frouxamente colado com durex era nada mais nada menos que trechos da letra de Perfeição.
Não vou mentir, apesar de não estar no nível deles, eu adorava fazer parte desse power trio da derrota nos tempos de colégio. Beijei um total de zero bocas, mordi um total de zero ‘beiços’, mas ao menos a gente era ignorado pela turma que fazia bullying. Nunca precisamos dar nossos lanches ou levamos um murro sequer em três anos de escola. Um feito e tanto.
Só que o ápice no que se diz respeito aos meus colegas praticantes da Religião Urbana não aconteceu em nenhum desses eventos e tampouco foi realizado por Dado. Ainda que o dia mais triste de todos tenha sido quando Renato Russo faleceu, na semana de um BA x VI super importante e que já tínhamos marcado de nos encontrarmos na torcida mista — aliás, mais uma saudade — e que acabei indo sem eles pois estavam de luto, o clímax mesmo aconteceu quando meu outro amigo, que não se vestia como ninguém da banda mas era meio que o líder do nosso grupo de três, achou que seria uma ideia incrível deixar um bilhete para uma garota da sala com a letra de uma das músicas da Legião, seguida de um pedido de namoro no meio de seu caderno.
E mesmo sem te ver
Acho até que estou indo bem
Só apareço, por assim dizer
Quando convém aparecerOu quando quero
Quando queroDesenho toda a calçada
Acaba o giz, tem tijolo de construção
Eu rabisco o sol
Que a chuva apagouQuero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, pra ser honesto só um pouquinho infelizMas tudo bem, tudo bem, tudo bem
Tudo bem, tudo bem, tudo bemLá vem, lá vem, lá vem de novo
Acho que estou gostando de alguém
E é de ti
Que não me esquecerei(Giz, Legião Urbana)
Não sei se na época ele se atentou ao fato de ‘só aparecer quando quiser’ ser uma escolha um pouco fora de mão para quem estava se postulando ser namorado de alguém, fora que a parte do “...e pra ser honesto, só um pouquinho infeliz…”, apesar de linda, era bastante subjetiva e talvez não ajudasse muito num contexto geral.
A garota que recebeu o correio elegante se chamava Elayne e usava os cabelos soltos e cacheados em longas ondas que ela vivia descolorindo. Ela era uma das meninas mais inteligentes da sala, tinha um sorriso contagiante e ela caminhava pelos corredores sem pressa, mas com um passo confiante de quem estava ali na escola apenas de passagem, sem tempo para perder com bobagens. Ela era bastante estudiosa e ajudava também os outros quando solicitada, ela era uma daquelas raras pessoas que mesmo quando você estivesse pra baixo, só de trocar um bom dia com ela, você já sentia uma energia positiva, como se tudo fosse possível. Só que o problema, pelo menos para esse meu amigo, eram aqueles seus olhos quase laranjas que não o deixavam dormir e nem prestar atenção nas aulas.
Uma vez fizemos um filme, fomos gravar no Pelourinho meia noite, eu era um dos monstros do nosso projeto de apocalipse por clones, aliás, um tema que se perdeu nas histórias e produções audiovisuais depois que a ovelha Dolly se mostrou forte e saudável. Como era um projeto de toda a sala, o máximo que a gente conseguiu foi colocar “Vamos Fazer um Filme” para tocar durante os créditos finais.
Elayne fazia parte da equipe de figurino e maquiagem e eu lembro de ter me sentido esquisito enquanto ela passava a mão pelo meu rosto. Ela sorria a cada progresso na minha transformação e a gente passou um bom tempo conversando e rindo, algo que nunca havia acontecido nos quase dois anos que estudamos juntos. Meu amigo era apaixonado por ela há mais tempo que Dado resolveu ser Dado e eu meio que sentia que isso deveria ter algum peso, como se o que tivesse sentindo naquele dia fosse terreno proibido até mesmo para sonhar.
O pessoal que era mais rico e tinha arrumado as câmeras de filmagem, deu um jeito de fazer um efeito tosco de triangular as cenas e, no filme da nossa sala que ganhou melhor direção e melhor produção no Festival de Cinema do colégio, apareciam três de mim com olhos profundos e uma cara toda branca, andando igual a um zumbi pelas ruas vazias do Pelourinho. Vendo as cenas eu apenas me lembrava do nosso papo e do quanto a gente estava rindo de toda aquela situação aos olhares de alguns poucos curiosos que ainda estavam no centro histórico na ativa.
Só que nesse dia perdido no final do século passado, já chegando em casa, Elayne me perguntou uma parada que ficou comigo por muito tempo.
“E seu amigo, hein? Ele tá melhor depois que o cantor favorito de vocês morreu?”
Essa pergunta me pegou por dois motivos, primeiro que isso aconteceu semanas após o dia que ela abriu seu caderno, viu uma folha solta com uma letra cursiva escrita com todo o carinho e leu por algum tempo a cartinha romântica que Renan tinha escrito pra ela. Ela olhou para o fundo da sala, que era onde sempre a gente se sentava, procurando por ele. Ao final da aula, ela dobrou o papel gentilmente e deixou em cima da carteira.
A gente esperou por um tempo os alunos saírem da sala para poder chegar na carteira dela. Meu amigo pegou o papel e leu o que ela havia escrito. Gritou um sonoro “DISGRAÇA!”, deu um soco na parede, amassou o papel, jogou fora fazendo uma cesta — que eu diria ser de três pontos dado a distância da lixeira — e desceu as escadas injuriado. Dado o acompanhou para o consolar e eu fui até o lixo curioso para saber o que tinha o deixado tão nervoso, apesar de já desconfiar.
O que mais me deixou intrigado, o segundo motivo que me pegou de jeito por conta da pergunta que Elayne tinha me feito naquele dia, era que ela achava que eu também era da Religião Urbana. Quando ela disse “...a banda de vocês…”, me incluiu em todo o mitiê como se fosse algo natural e cristalino. Aos olhos dela, eu era apenas mais um maluco fã da banda de rock nacional com músicas altamente depressivas cantadas de forma empolgante. Um daqueles momentos em que a vida nos dá uma rasteira por trás e a gente cai no chão sem saber, ainda, o que nos derrubou. Tela azul do Windows.
Pensando bem, tudo fazia sentido. Eu andava sempre com eles e em todos os nossos trabalhos eu estava lá, interpretando Bonfá ou algum outro integrante itinerante da banda, fazendo cenário, recitando as letras, ou seja, eu era parte de tudo aquilo, eu era a própria seita.
Ninguém te avisa antes, “olha, preste atenção…” ou então “Não sei se você se ligou, mas você está indo por um caminho perigoso…”, nada disso. Quando você pisca os olhos e se dá conta já está acordando em uma banheira cheia de gelo com um rim a menos.
Pelo menos era uma seita bem legal, uma pena que não éramos maconheiros drogados e nem riscávamos pentagramas pelas paredes ou mordíamos beiços de pessoas vestidas de preto, mas acabou se tornando uma longa e gostosa amizade que durou todo o tempo que foi necessário.
Só que eu sei que, se você chegou até aqui foi para saber o que Elayne escreveu para Renan, e não por conta de todos os motivos que a pergunta que ela me fez me deixou pensativo e, hoje, mais de vinte anos depois, nostálgico.
O que ela escreveu, bem abaixo da parte que diz “tudo bem, tudo bem”, foi algo simples, sincero e bastante cuidadoso, como eram todas as coisas que ela fazia.
“Achei linda a letra, mas não, obrigada.”
Não, obrigada.
Uma coisa ninguém poderia jamais desmentir, além de tudo, ela era muito educada.
Ao contrário dos outros dias que começo com um texto introdutório, resolvi ir direto ao ponto hoje. No próximo envio vou testando outros formatos até ver qual funciona melhor.
Fiz uma playlist para essa edição, o nome você já sabe.
Um abraço para você que chegou até aqui.
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Queixar - Não, você não está prestando nenhuma queixa, muito pelo contrário. Quando você está interessado em uma pessoa, ao invés de cantar essa pessoa, você queixa essa pessoa. Independe se você quer apenas beijar ou dar uns amassos ou se é para algo mais sério como um namoro. Pode ser usado de uma forma menos romântica também quando você quer pedir algo para outrem numa situação que, alguns, poderiam dizer que você é cara de pau, ou melhor, um(a) queixão(ona) (geralmente seguido de “da porra”, que é a versão super.)