Ser surpreendido por situações enganosas ou descobrir que a realidade é bem diferente do que imaginávamos é algo que todos nós já vivenciamos. Seja com uma festa surpresa realizada por amigues ou a descoberta tardia das letras miúdas em uma oferta, todos conhecemos a sensação de estar por fora da verdadeira verdade.
Neste contexto, pense agora em uma pessoa ordinária (não no sentido Tchan Místico) envolvida em uma trama que parece real, mas que esconde uma fraude cuidadosamente planejada. Imagine-se nessa situação, desafiado a distinguir o real do inusitado, apenas para descobrir – só no final – que você foi enganado. Sim, você.
Filmes como Matrix ou O Mundo de Andy já exploraram esse tema com muito sucesso e boa parte das pessoas se conectam primeiramente nos aspectos científicos e sociais. Eu sou um pouco diferente, o que me preocupa quando penso em situações como estas é algo bobo, mas que me assusta muito mais.
Por exemplo: Quais segredos ocultos existem por trás das cortinas de um julgamento?
Como peças de um quebra-cabeça que se encaixam aos poucos, os mistérios e todo o embate do linguajar rebuscado do juridiquês é travado entre defesa e e acusação diante da figura imponente de um juiz e das pessoas selecionadas para o júri. Apesar da aparente normalidade do cenário, por trás da fachada da justiça se esconde uma teia de mentiras e ilusões meticulosamente arquitetadas para fazer um sujeito bacana e generoso se passar por um verdadeiro otário.
Bom, pelo menos foi esse o primeiro pensamento que me veio ao assistir a série "Jury Duty" e me colocar no lugar do “protagonista”.
Na Mira do Júri
"Juri Duty" é um "mockumentary" onde, exceto por Ronald Gladden, um jurado real em um tribunal falso, todos estão atuando. Gladden acredita estar em um documentário sério sobre o sistema jurídico americano, sem saber que tudo ao seu redor é encenado.
Essa autenticidade evita que "Jury Duty" seja um mockumentary convencional, adicionando uma camada de realismo e imprevisibilidade à trama cuidadosamente planejada. Gladden, todos os atores contratados e a equipe responsável pelo programa são guiados pelas circunstâncias dos acontecimentos, só que ele (Gladden) torna-se o elemento vital e, ao mesmo tempo, uma peça no jogo de um experimento peculiar que mescla realidade e ficção.
A verdadeira reviravolta de todas as situações absurdas que são apresentadas acontece no último episódio1. Ao final de um julgamento muito bem simulado, o jurado Ronald Gladden descobre que tudo não passava de uma encenação, uma informação que ele recebe na caixa dos peito perplexo e que o faz questionar sua própria percepção da realidade.
Não é um spoiler da série, afinal isso é explicado logo no início (o fato dele ser o único a não saber de tudo).
Ele custa a acreditar no que acabou de viver. Mesmo tendo a resposta diante de seus olhos, dito por todos os atores contratados (incluindo o ator James Marsden que interpretava ele mesmo mas numa versão mais alucinada), ele ainda passa uns bons minutos rebobinando sua mente. Ele segue questionando todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se tornaram muito íntimos e próximos dele. Em um determinado momento ele pergunta para uma das atrizes: “Você não é uma policial de verdade?”. O que faz ela ficar um pouco constrangida, mas ao mesmo tempo feliz de ter interpretado tão bem a sua personagem ao ponto de ser extremamente crível.
Ele recebeu 100 mil dólares por sua participação. Uma quantia suntuosa e que acredito que muitos adorariam receber para fazer esse papel. Só que até antes disso ser revelado, a única coisa que me passava pela cabeça era pensar o quanto ele estava sendo sacaneado.
Coitado, que otário, era isso o que eu pensava a todo instante.
Assim que terminei de ver essa série, a qual recomendo fortemente, em especial para os fãs de The Office e Parks and Recreation, eu corri para o Obsidian (meu app de notas) e criei uma lista com um punhado de vezes as quais eu também me senti como Gladden, mas só que sem os 100 mil dólares de prêmio.
Vou listar apenas cinco vezes em que a palavra otário (que possui diferentes vertentes) foi a primeira coisa que me surgiu, porque se eu fosse escrever sobre todas as vezes que me senti como um, precisaria de uma newsletter só para esse tema.
🕶️ - No século passado, um dos meus tios me levou para conhecer o futuroso cinema 3D que surgiu ao lado do mais emblemático Shopping de Salvador naqueles tempos, o Iguatemi (hoje Shopping da Bahia). Sem saber que se tornaria a pior desgraça do cinema moderno, pegamos uma fila de duas horas para assistir, pela primeira vez, cenas em três dimensões. Não era nenhum filme famoso, eram imagens aleatórias de peixes, bichos e cenas cotidianas em 3D.
Teria sido uma experiência guardada na caixinha de momentos gostosos sabor sorvete de coco verde não fosse o simples fato de, após a longa espera, entrarmos na sessão sem os óculos 3D. A moça nos assegurou que a gente podia ir se sentar que ela já ia pegar os nossos óculos.
Até hoje espero a moça. Enquanto as pessoas se remexiam e gritavam em suas cadeiras, a gente via apenas uma sucessão de cenas borradas. Eu era uma criança muito tímida para voltar e solicitar os óculos.
🖥️ - Posso contar nos dedos da mão de um Goblin quantas vezes em toda minha existência eu fui contemplado em algum sorteio. A primeira aconteceu quando eu tinha 15 anos em um evento de tecnologia no antigo Centro de Convenções da Bahia que teve sua manutenção oportunamente negligenciada por anos até desabar e poder virar objeto de disputa da especulação imobiliária soteropolitana. Ao visitar um dos stands, eu assinei meu nome e telefone (fixo) para participar do sorteio de um curso de computação gráfica num estabelecimento de renome que existia por aqui.
Passado uns dias fui informado por telefone que havia sido um dos contemplados. A última vez que tinha sido tão feliz até aquele momento havia sido o dia em que o Vitória havia chegado a final do Campeonato Brasileiro de 19932.
No dia seguinte, peguei o Alto do Coqueirinho/Lapa e fui até o centro da cidade realizar a minha matrícula. Meu sorriso morreu na hora que eu descobri que, na verdade, veja bem, eu ganhei uma aula gratuita mas teria que pagar rios de dinheiro para fazer o curso completo. Isso só foi avisado depois que conheci todo o local, lindo e com computadores Pentium super potentes, ar condicionado, chocolate quente e gelados à vontade e um plano de curso maravilhoso que me faria trabalhar na Disney e tudo mais.
Eu saí tão triste e frustrado nesse dia que em determinado momento minha audição desligou. O rapaz falava sem parar numa saleta em que você é propositalmente apertado para ceder ao capital, mas eu só percebia que ele estava falando porque sua boca não parava de mexer. Era tão azul o ambiente que dava para enxergar até mesmo a mão invisível do mercado empurrando a caneta para assinatura do contrato. Quando me dei conta que todo dia saía da casa do caralho3 um otário e uma pessoa que te sorteou num curso grátis que você vai ter que pagar em 24 prestações, eu simplesmente me levantei e fui embora sem sequer me despedir das pessoas.
💋- O Festival de Verão Salvador era um dos maiores eventos da cidade realizado, nos primeiros anos, no Parque de Exposições que era um dos raros locais próximos à minha casa. Logo após um showzaço do Natiruts, eu tentei sair da área do palco, mas os acessos principais estavam abarrotados de gente. E em áreas assim é certo que muitos furtos acontecem e, sabendo disso e sendo astuto o suficiente para ter sido assaltado uma única vez na vida, eu resolvi subir pela arquibancada que estava bem ao meu lado. Era um pouco alta, mas dava para dar um saltinho, segurar com as mãos na barra, passar por baixo dela e seguir tranquilamente para fora daquela muvuca.
Eu usava uma calça cargo verde musgo (sim, eu sei) e uma camisa preta que já andava sozinha pela cidade de tanto que a usava, afinal eu era fã do Charlie Brown Jr que ainda iria se apresentar naquela noite. A pose de maloqueiro skatista eu tinha demais, mesmo tendo andado em um pela última vez aos meus 13 anos, ou seja, naquela faixa horária do campeonato tinha pelo menos uns 3 anos que não sabia o que era um skate.
Assim que pisei na arquibancada eu senti uma mão no meu bolso de trás. Minha primeira reação foi a de pensar que estava sofrendo uma tentativa de furto muito fuleira4 e desastrada, afinal a pessoa tinha enfiado a mão no meu bolso com uma força excessiva. Tanta que minha calça começou a arriar mostrando minha cueca asa delta da zorba branca (aquela em que o piu piu aparecia nas propagandas). Antes de eu terminar a frase “Quiporressa aí, oxe?”, sem muita preocupação, pois nesse bolso só tinham 3 pastilhas halls (conhecida popularmente por aqui como rális), eu ouvi uma voz mansa de uma garota com cabelos cacheados e pose de skatista também. Era a Avril Lavigne d’Oxum.
— Me ajuda menino, por favor – ela falou de um jeito tão meigo e era tão simpática que deixei ela fazer o que quisesse. Poderia até me roubar que estava de boa, mas não era esse o caso.
Eu a segurei gentilmente pela mão até ela se apoiar e subir no primeiro degrau da arquibancada. Ela me agarrou por trás e me abraçou pela cintura. É hoje! Eu pensei na hora.
Subimos sem pressa e quando chegamos fora da área do palco a gente parou pra respirar, rir um pouco e ficamos algum tempo de frente um pro outro. O conselho mundial de saúde, se ali estivesse, realizaria que estávamos próximos demais.
– Obrigado, viu, você foi meu salva-vidas – ela disse enquanto ajeitava o cabelo com uma mão e ainda segurava a outra em minha cintura, com carinho, esperando que eu tomasse a iniciativa.
Valente e destemido como um bom galante eu esperei um tempo, eu acho que entre nossos rostos só passava uma folha de ofício. No compasso de um instante afinal não há nada mais que o céu azul… eu pensava no que eu poderia combinar com “Você foi meu salva-vidas”.
A melhor resposta seria possivelmente nenhuma e só chegar na manha e aproveitar o melhor que a adolescência pode nos oferecer. Mas eu tive uma ideia repentina que poderia funcionar, pois era um daqueles casos em que qualquer coisa minimamente educada e digna daria certo, até mesmo uma bobagem qualquer como “agora só falta a respiração boca a boca”.
Tá, não iria funcionar, mas a gente iria rir gostoso disso. Apostaria dinheiro se já existisse Bet Esportiva naquela época.
– Ah, de nada. Vou aqui que estou com fome.
Da mesma forma que o que tenho em mente minha mão nunca consegue passar corretamente para o papel quando desenho, era como se as palavras não obedecessem o que tinha arquitetado naqueles eternos dois segundos que levei para respondê-la.
A garota mirou meus ombros magros, apertou os olhos e tirou a mão da minha cintura para colocar na dela. O seu sorriso foi sumindo como se fosse um castelo de areia sendo apagado pelas ondas do mar. Ela ainda ficou alguns segundos parada enquanto eu caminhava para a direção oposta da praça de alimentação.
Nunca mais nos vimos.
🚨 - Quando estava em Lisboa em 2017 (a única vez que saí do país) eu peguei um comboio e dentro dele li a seguinte frase: “Cuidado com os carteiristas”. Eu só entendi o que era um carteirista quando vi o desenho de uma mão puxando uma carteira. Minha primeira reação foi rir, afinal, só sendo um completo otário para ser assaltado em Portugal. Quem vive em Salvador, Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade com grandes números de assaltos e furtos aqui no Brasil e anda pra cima e pra baixo de ônibus, já adquiriu streetwise o suficiente para evitar ser assaltado por amadores.
Não que quem seja assaltado seja otário, muito longe disso, mas as pessoas que possuem as skills precogs de prevenção a subtração de itens só são surpreendidas se o meliante for mais esperto ou usar da violência. Nunca é culpa da vítima, mas uma mão lusitana boba puxando um pertence meu? Utopia.
Dito isso, sem nenhuma modéstia, eu seria capaz de apostar dinheiro para ver algum lusitano conseguir me roubar. Dobraria a aposta se fosse um carteirista.
⌚ - Estava voltando do colégio por uma das ruas escondidas que encurtavam o caminho até a minha casa. Tinha uma porrada dessas ruelas com mato alto e sem asfalto que desembocavam na pirambeira que eu morava na virada do século.
Era uma sexta-feira, eu voltava despreocupado quando um rapaz que estava a poucos metros de mim, caminhando na mesma direção, me fez uma pergunta.
– Ei, tudo bem?
– Tudo - respondi.
– Venha cá, eu to procurando aqui, mas não tô achando. Você conhece alguma Maria Joaquina?
– Maria Joaquina?
– Sim, a casa dela é aqui nessa rua, você sabe onde fica? – Ele perguntou, dessa vez se aproximando de mim.
– Rapaz… Não.
Num movimento que no controle do Super Nintendo seria meia lua e os três de murro, ele segurou meu braço super fino e gritou “Passa o bobo, passa o bobo!”.
Descobri naquele dia duas coisas. Que bobo era a nova gíria para relógio e que ser assaltado é muito triste, ainda mais quando você é feito de otário.
O ano era 1997, a banda Pimenta N’Ativa estourava nas rádios baianas com o hit abaixo
Maria Joaquina de Amaral Pereira Goes
Você "contriboe" para o meu viver
O texto de hoje é uma homenagem a todas as pessoas que já fizeram papel de otário seja em formato presencial ou remoto.
Depois ainda acompanhamos cenas de bastidores, apresentando como tudo foi feito, quando eu digo final, é o final da “farsa”.
Quando chegamos a final depois de eliminar o invicto Corinthians, Flamengo e Santos foi lindo. A final em si foi uma tragédia 😪
Do Alto do Coqueirinho onde morava para o centro da cidade, de ônibus, dava quase duas horas de ida. Para voltar era mais porque o ônibus dava algumas voltas naqueles tempos.
Fuleiro é algo simples ou que foi arquitetado mediante parcos recursos; fudido no sentido literal da palavra, não o paulista.
Kkkkk adorei a resposta pra skatista Avril. E eu, em Paris, tive tanto medo quanto no RJ. Moro no Rio, mas os malandros daqui eu já conheço 🤣
Chorei de rir com a frase entregue à Avril D'Oxum. Talvez porque me lembre certo adolescente tímido... quase não lembro na verdade, isso tem uns 40 anos.