Tenho saudades, mas evito fazer delas morada. Gosto de olhar para fotos antigas quando sinto vontade, procurando sensações que nunca mais serão as mesmas. Tipo aquele papo sobre a primeira dose de uma droga muito prejudicial ser sempre a melhor. Não experimentei todas as drogas para ter certeza disso, então talvez esteja errado ao pensar que seja conversa fiada. É inevitável quando uma lembrança lhe puxa e te embala, um perigo calculado, um mergulho de pé para não bater com a cabeça no raso.E você, como se sente hoje? – Pergunta aquela vizinha educada, no elevador, apenas para constar. Não é culpa dela, mas por dois nanossegundos sua mente vai rodar em loop e até dar tela azul.Final do ano sempre me traz um sentimento mesclado, ou melhor, um blend de emoções com 30% de uma sensação que às vezes chamo de nostalgia para não dizer que é tudo tristeza. Peguei uma foto minha criança, sentado num sofá com uma cortina atrás de mim. Além dela me lembrar que eu tinha muito cabelo e que meus dentes tortos não foram completamente corrigidos com o passar das décadas, o que me pegou foram as texturas. A malha da cortina pesada com desenhos de folhas e plantas e a almofada do sofá com adornos de bambu e folhas que lembram aquela da bandeira do Canadá. O porquê das coisas mais insignificantes nos pegarem eu não sei bem explicar. Outro dia a playlist número quatro que quase sempre traz músicas nacionais tocou uma com Caetano e o filho cantando “Deusa do Amor”, do Olodum. Ela tem um passo bem lento, quase como se eles tivessem feito isso de propósito, querendo prolongar a sensação boa que essa canção traz. Na época que o Olodum a lançou nas rádios eu morava no Alto do Coqueirinho, meus amigos não eram mais os mesmos e eu andava pelas ruas de terra vermelha descalço e cantando “balança o mais forte alicerce que tem nesse mundo…” enquanto procurava as melhores taliscas nas folhas que se debruçavam pelos muros das casas para fazer pipas que eu nunca iria empinar. Eu comprava dezenas de papéis de seda coloridos, barbante e perdia tardes incontáveis combinando cores e formas. As que eu mais gostava sempre envolviam roxo e amarelo. Às vezes fazia uma pipa cada lado de uma cor, outras fazia em quatro partes e lembro bem do dia que fiz uma parecida com a camisa da Croácia – me desculpe por despertar tristeza em você também agora, não foi proposital, juro – que, assim como todas as outras, eu dava aos meus novos colegas que não podiam cantar parabéns, ir em festas e muito menos faltar a Igreja. As pipas eram o que nos unia com mais frequência e eu, mesmo sem saber cortar ninguém e mal conseguir colocar uma no ar, adorava ver minhas obras de arte (vocês precisavam ver as rabadas majestosas que eu fazia com um sem fim de fitas cortadas dos sacos plásticos do Unimar) na mão de pessoas que sabiam bem o que estavam fazendo. A vermelha e branca quadriculada – vamos chamar assim para evitar gatilhos – foi uma das mais icônicas na Rua Bonsucesso. Isso porque ela passou semanas cortando todo mundo e voando imponente pelo céu azul do bairro. Esse frenesi da vermelha e branca atraía a garotada e até os pais de alguns para as tardes de domingo quando a gente sentava com aquelas cadeiras de plástico brancas na calçada para colocar a fofoca em dia.
Partilhe este post
Vem me embalar, neném
Partilhe este post
Tenho saudades, mas evito fazer delas morada. Gosto de olhar para fotos antigas quando sinto vontade, procurando sensações que nunca mais serão as mesmas. Tipo aquele papo sobre a primeira dose de uma droga muito prejudicial ser sempre a melhor. Não experimentei todas as drogas para ter certeza disso, então talvez esteja errado ao pensar que seja conversa fiada. É inevitável quando uma lembrança lhe puxa e te embala, um perigo calculado, um mergulho de pé para não bater com a cabeça no raso.E você, como se sente hoje? – Pergunta aquela vizinha educada, no elevador, apenas para constar. Não é culpa dela, mas por dois nanossegundos sua mente vai rodar em loop e até dar tela azul.Final do ano sempre me traz um sentimento mesclado, ou melhor, um blend de emoções com 30% de uma sensação que às vezes chamo de nostalgia para não dizer que é tudo tristeza. Peguei uma foto minha criança, sentado num sofá com uma cortina atrás de mim. Além dela me lembrar que eu tinha muito cabelo e que meus dentes tortos não foram completamente corrigidos com o passar das décadas, o que me pegou foram as texturas. A malha da cortina pesada com desenhos de folhas e plantas e a almofada do sofá com adornos de bambu e folhas que lembram aquela da bandeira do Canadá. O porquê das coisas mais insignificantes nos pegarem eu não sei bem explicar. Outro dia a playlist número quatro que quase sempre traz músicas nacionais tocou uma com Caetano e o filho cantando “Deusa do Amor”, do Olodum. Ela tem um passo bem lento, quase como se eles tivessem feito isso de propósito, querendo prolongar a sensação boa que essa canção traz. Na época que o Olodum a lançou nas rádios eu morava no Alto do Coqueirinho, meus amigos não eram mais os mesmos e eu andava pelas ruas de terra vermelha descalço e cantando “balança o mais forte alicerce que tem nesse mundo…” enquanto procurava as melhores taliscas nas folhas que se debruçavam pelos muros das casas para fazer pipas que eu nunca iria empinar. Eu comprava dezenas de papéis de seda coloridos, barbante e perdia tardes incontáveis combinando cores e formas. As que eu mais gostava sempre envolviam roxo e amarelo. Às vezes fazia uma pipa cada lado de uma cor, outras fazia em quatro partes e lembro bem do dia que fiz uma parecida com a camisa da Croácia – me desculpe por despertar tristeza em você também agora, não foi proposital, juro – que, assim como todas as outras, eu dava aos meus novos colegas que não podiam cantar parabéns, ir em festas e muito menos faltar a Igreja. As pipas eram o que nos unia com mais frequência e eu, mesmo sem saber cortar ninguém e mal conseguir colocar uma no ar, adorava ver minhas obras de arte (vocês precisavam ver as rabadas majestosas que eu fazia com um sem fim de fitas cortadas dos sacos plásticos do Unimar) na mão de pessoas que sabiam bem o que estavam fazendo. A vermelha e branca quadriculada – vamos chamar assim para evitar gatilhos – foi uma das mais icônicas na Rua Bonsucesso. Isso porque ela passou semanas cortando todo mundo e voando imponente pelo céu azul do bairro. Esse frenesi da vermelha e branca atraía a garotada e até os pais de alguns para as tardes de domingo quando a gente sentava com aquelas cadeiras de plástico brancas na calçada para colocar a fofoca em dia.