Fevereiro pra mim tem sabor de sundae de morango. Aquele com calda artificial e que vinha com um uma bolinha de chiclete no fundo, dura que só a porra.
Guardei minha infância num quarto bem iluminado, numa gaveta limpa, ainda assim juntou poeira. A vida no século passado era um blend aloprado de aventuras infantis em contraste com a realidade alucinada da vida dos adultos. Eles se assustavam ao virar o corredor de um mercado e observar os preços esticando. Fora isso, a qualquer instante uma guerra nuclear poderia pipocar e, de quebra, algum alienígena, desocupado, poderia nos abduzir em uma terça-feira à noite.
A parte disso tudo se encontravam as relações cotidianas. No meio das brincadeiras, sistemas intrincados de exclusão passavam desapercebidos por nós, crianças. E Salvador, por mais que sempre tenha tido uma cota folclórica na TV e nos telejornais, também era refém dos resquícios do fim da ditadura e de uma emergente abertura econômica, que era brilhante, mas apenas para quem tinha condições de ter uma cristaleira na sala de estar.
Durante a pandemia, no mês de novembro de 2020, eu cataloguei vários momentos da minha infância que aconteceram em um conjunto chamado Parque Júlio César, localizado na Pituba em Salvador. Um dos raríssimos bairros planejados da capital baiana.
Entre textos divertidos e boas lembranças, alguns me abriram os olhos para atitudes que me fizeram entender o porquê de tantas pessoas próximas terem se convertido para o lado sombrio da Força.
De onde saíram essas pessoas? Me perguntou dia desses um senhor na mesa colada com a minha no restaurante daqui da rua, ao ver uma alma sebosa aplicar um golpe em seus familiares mais próximos e que lhe ajudaram toda a vida no noticiário de meio dia, no que respondi: Elas estão do nosso lado. O tempo todo.
Num reflexo involuntário, ele olhou para o outro lado e segurou a carteira no bolso.
O texto de hoje faz parte de uma das crônicas desse livro que não existe.
Os Copos de Tia Elena
Ir ao mercado era uma corrida contra o tempo. O medo dos meus pais era o salário atrasar e os preços subirem antes de colocarmos os produtos no carrinho. Existia uma maquininha que ia colando os novos preços nos produtos num “tac, tac” que eriçava os pelos dos adultos. As crianças eram soltas pelos corredores como se fossem atletas olímpicas, mas era sempre um jogo de soma zero: ou corríamos, ou pagávamos mais caro.
Outra coisa que assustava os adultos naqueles tempos eram os estranhos. Pessoas mal intencionadas que iriam falar inverdades e enganar os seus filhos. Levar para o mundo das drogas e perdição. E esse medo se acentuou na semana em que foi veiculado nos telejornais soteropolitanos uma notícia que as balas e doces vendidas defronte as escolas estavam recheadas com cocaína. Uma estratégia de marketing que não fazia o menor sentido. A não ser que você fosse dono de cantinas em colégio e observasse suas vendas superfaturadas não performarem tanto quanto o tio/a tia da esquina que vendia bem mais barato.
Eles sempre nos diziam para não acreditar em estranhos, mas talvez fosse um aviso para as suas próprias versões do futuro. Já que o que mais fazem, atualmente, é acreditar em qualquer coisa que surjam em seus celulares.
Estes eram os medos dos adultos que, no alto de meus nove anos de idade, eu já havia identificado. O meu medo em relação ao dia de compras no mercado era se, quando voltássemos, haveria energia elétrica. Carregar sacolas e mais sacolas subindo intermináveis degraus. Após centenas de lances de escada, procurávamos onde diabos escondemos as velas, alguns pires ou copos de extrato de tomate para apoiá-las e pronto. Riscávamos alguns fósforos e torcíamos para o vento do litoral não nos deixar na completa escuridão.
Eu tinha um medo leve do fantasminha do jogo Alex Kidd in Miracle World do Master System que me trucidou diversas vezes em uma das últimas partes do game porque a revista de videogames tinha enviado a sequência ERRADA para passar de fase. A edição com a correção só chegaria no mês seguinte e, até lá, até descobrir isso, eu iria jogar o controle no chão algumas vezes.

Naquela época, eu não tinha medo de coisas que hoje me assustam. Das conversas e atitudes que pareciam inofensivas, mas carregavam séculos de exclusão e preconceito.
Em uma dessas vezes, tínhamos passado horas jogando futebol de botão no corredor do décimo sexto andar. Em mais um campeonato do Condomínio Edifício Marcelo, já estávamos nas semifinais quando batemos na porta de dona Elena para pedir água.
Enquanto todos bebíamos em silêncio, Érico começou a rir, apontando para o copo de Alex do 1. Era um copo menor, com restos de papel ainda colados. Tia Elena segurava um sorriso condescendente, como se olhasse um ninho com filhotes de hamsters se debatendo, fingindo admiração, mas sem ousar encostar neles. Certa que estava cada um em seu devido lugar. Alex bebia devagar, sem graça, tentando ignorar os olhares.
Tia Elena tinha copos para cada tipo de ocasião. Se fosse receber amigos eram os maiores e compridos com losangos em branco desenhados; se fosse para as crianças do prédio eram os copos americanos, que nem estadunidenses eram; para serem exibidos na sala e nunca serem usados os de cristal, que ganhou em seu casamento e, para técnicos, encanadores, porteiros e as moças que só podiam subir e descer pelo elevador onde se transportava lixo, os de extrato de tomate. O mesmo que nosso coleguinha segurava.
Passou bastante tempo até rolar outro campeonato. Àquela altura eu já havia zerado, finalmente, Alex Kidd in Miracle World depois que a revista enviou a sequência correta de luas e sóis para não ser morto pelo fantasminha cinza e Alex, o personagem do videogame, seguir adiante até o final da história que era, decepcionante.
Vejam só, o pequeno Alex, o herói improvável, se lenhou todo para salvar o reino e reencontrar o seu rei, que por um acaso era ninguém menos que o seu próprio pai. Já, de cara, um conceito utópico, o filho de alguém rico arriscando sua vida e trabalhando.
Alex Kidd salva a porra toda, incluindo o seu irmão Eagle, deixando claro que a combinação de nomes entre filhos, pelo visto, não era uma prática comum naquele universo e, como não poderia deixar de ser, também a bela princesa. Afinal, que outro papel as mulheres poderiam desempenhar na sociedade, nos filmes e histórias escritas no século passado?
No encerramento, quem é coroado rei e fica com a princesa é o seu irmão Eagle e Alex, feliz — como, eu não conseguia compreender — ganha o título de Protetor do Reino enquanto o paradeiro do seu pai, o antigo monarca, segue desconhecido e não era mais objeto de preocupação de ninguém.
Dona Elena saiu do elevador e deu de cara com a gente jogando botão (futebol de mesa), outra vez. Ela demonstrava uma felicidade tão genuína em seus sorrisos quando via a gente fazendo barulho no corredor do seu andar quanto a que Alex Kidd, se fosse uma pessoa real, teria após ganhar um certificado como prêmio por de ter assassinado criaturas, jogado dezenas de disputas de pedra, papel, tesoura e ainda ter que sair na mão com aqueles que não aceitavam a derrota no jokenpo.
— Vocês já gostam de brincar disso né meninos? — Ela disse, nos olhando com as bochechas suspensas por pregadores invisíveis.
Ninguém respondeu. Érico sorriu, e o restante assentiu com a cabeça. Antes de girar a chave na porta, ela perguntou se a gente estava com sede e todo mundo se levantou para beber a água gelada de tia Elena.
Ganhamos os copos de sempre, os pequenos e indestrutíveis. Quando devolvi o meu, ela perguntou onde estava o nosso amiguinho.
— Quem? — Eu perguntei.
— Aquele, baixinho, mais bronzeadinho.
Na época, eu não havia captado a nuance da pergunta, e não era algo incomum em Salvador. A forma de se referir às pessoas por uma suposta quantidade de sol que elas tenham tomado. Um comportamento que nunca deveria ser aceito, mas era. E, pasmem, na capital mais negra do mundo (fora do continente africano).
Eu não entendia também o peso de um copo de extrato de tomate. Não sabia que ele falava apenas sobre quem o dava e não sobre quem recebia. Nem que havia um copo certo para cada pessoa e, muitas vezes, até uma água certa para cada visita.
Esse comportamento era muito comum nos lares que possuíam uma cristaleira na sala, exibindo utensílios que nunca iriam ser usados. Copos que nunca viram nenhum tipo de água, suco ou bebida dentro deles, que ficavam ali para servirem como enfeite, como exibição do tipo de pessoa que você era. Ou fantasiava ser.
Não satisfeita com a ausência dele, Tia Elena continuou.
— Aquele coleguinha de vocês, mora onde? Veio do interior ou deve morar longe, né?
— Não, ele é daqui mesmo. Daqui do prédio. — Érico respondeu.
— Daqui? É mesmo? Nunca tinha visto ele por aqui antes.
— Oxe, sim, já tem mais de um ano. Ele mora no primeiro andar. — Eu disse.
— Ah certo, entendi. Só podia ser…
Eu e meus amigos franzimos a testa, a gente ainda era muito inocente e pouco atento a essas conversas, já que elas aconteciam com a mesma naturalidade que a gente comia chocolate em formatos de cigarro ou chupávamos balas mortais que entalavam em nossa garganta nos sufocando.
— Eu acho legal que não precisa nem pegar elevador, sabe?
Felipe do 13 tomou a frente da conversa, sem saber que o mercado imobiliário reservava um andar para cada tipo de bolso, e em prédios com elevador e muitos apartamentos, quanto mais alto, mais caro era.
Tia Elena apenas arregalou os olhos e viajou para algum canto sombrio da sua mente. Ela despertou quando já estava quase todo mundo fora da cozinha dela e só fechou a porta depois que deixou os copos sujos na pia para serem levados.
Não por ela, claro.
Todos os nomes, andares, ou quaisquer referências às pessoas reais que moraram comigo foram obviamente alterados. Menos as do Game Alex Kidd, seu irmão realmente se chamava Eagle
Esse texto faz parte de um livro de crônicas que só existe em meu google drive e se chama Caixa de Lápis de Cor, em alusão aos prédios coloridos do Parque Júlio César.
Eu tinha uma tia que morava aí perto. Subindo a Salermo, e eu ia aí Júlio Cesar tomar sorvete. Meu tio teve o Fusca roubado na frente do mercadinho que tinha nessa rotatória. Tinha uma banca de revista também que comprava umas figurinhas. Uma viagem no tempo.
Marcio, amei o nome do livro.
Sobre o tema abordado na crônica, racismo contra crianças, acho das atitudes mais perversas que um ser humano pode ter. Me parte o coração em pensar que até hoje pessoas agem dessa forma (antes era escancarado, hoje há certa dissimulação).
Grande texto.
um beijo.