A pessoa tímida em Salvador recebe bônus em streetwise1, paciência ou qualquer outra habilidade que desejar. Está escrito no Manual de RPG2 Soteropolitano, Capítulo 2 - Ficha de Personagem.
É impossível você andar pelas ruas da capital baiana sem ser abordado, mesmo que seja apenas para ouvir um “bom dia, flor do dia” ou toda a história de vida da pessoa sem que você, ou qualquer outro ao redor, tenha perguntado absolutamente nada para o interlocutor.
Para evitar qualquer contato, você precisaria ter habilidades vis como ser um prosa ruim3 ou andar pelas sombras, entretanto, sendo você um soteropolitano ou estando apenas de passagem, é bem complicado, muito mesmo.
Introvertidos tendem a se adaptar bem ao nosso jeitinho, por mais paradoxal que pareça. Falo por experiência própria, já que faço parte dessa turma mais caladinha, que ouve mais do que fala. Existe uma magia aqui que te arrasta para conversas inesperadas, mas de um jeito bom.
Pensei muito nisso enquanto rolava as timelines nas últimas semanas. Vi pessoas reclamando de como em suas cidades ninguém fala com ninguém, nem mesmo seus vizinhos, quiçá desconhecidos na rua. Algo que beira ao exótico para quem vive na terra de todos os Santos e encantos.
Outra reclamação constante é que fazer amizades após os 10 anos de idade parece mais improvável do que ser contemplado em um consórcio sem dar um vultuoso aporte ou vencer na vida trabalhando mais que 14 horas por dia. Na capital baiana, amizades acontecem até no meio de uma briga.
Risque um pentagrama no chão.
Jogue bola com a entidade que você invocou.
Tem uma outra forma muito boa para quebrar o gelo, para dar aquele empurrão se você for mais envergonhado que o normal. E uma delas é se vestir adequadamente…
Para raios de gente
Num sábado desses, bem cedinho, vesti o manto sagrado do Vitória para ir ao mercado. Algo banal em qualquer lugar do mundo, mas não aqui, ainda mais para quem vai a pé.
O primeiro senhor que passou por mim na rua, já me fuzilou com um “Bom dia COLOSSAL¨. Nosso time nem é grandes coisas, mas não deixa de ser mais do que gigante, maior que o mundo!
Um entregador de aplicativo passou do outro lado, pedalando em alta na bike do banco laranja gritando para mim “Vai tomar pau amanhã, hein”. Ele se referia ao Colossal, não que eu iria apanhar no domingo, até porque domingo ela não vai. Mandei um joinha esticado aos céus e a gente sorriu um pro outro. Nunca nos vimos.
Comprei o que não tinha que comprar, esqueci do leite em pó e, na fila, um senhor começou a contar toda a saga da sua filha caçula para conseguir viajar para Feira de Santana com suas três netas (dele), o CORNO do marido dela e o cachorro com sarna. Pausa para ele querendo falar de como sabia que o genro era chifrado pela filha, mas as pessoas só se preocupavam em saber do dog. Qual raça era, quantos anos tinha, etc.
Sim, ninguém perguntou porra nenhuma, ele estava apenas conversando com seus amigos de fila de supermercado. A caixa que passou meus pedidos ria, mas solicita lembrou: “remédio bom pra Sarna de cachorro eu até tenho lá em casa, deixa ver se ele vem aqui que eu indico”.
Lembrei do leite quando saí do mercado, daria para voltar e comprar, mas o sol estava lascando em banda e um outro sujeito me abordou. com cara de quem iria me oferecer algum esquema de pirâmide. Eu só não sabia que era pior que isso.

Sem eu ter solicitado, o sujeito me deu um plano estratégico completo para transformar nosso querido Leão da Barra no Real Madrid do Nordeste. E como isso funcionaria? Simples:
Como presidente, meu primeiro passo seria acabar com esse negócio de ter que ter Presidente.
Nem preciso dizer que achei um plano muito interessante e deixei claro para ele o quanto fiquei entusiasmado, apesar do seu conceito ser oblíquo e nubiloso. Me despedi logo na sequência quando ele concatenou essa conversa com reclamações ao governo Lula e, claro, ao PT também.
Quem falou sobre política? Ninguém, e se você não está acompanhando ainda não está preparado para Salvador.
Estava a pé, mas fingi que meu carro chegou quando parou um motorista de aplicativo acenando (para outra pessoa) e dei o famoso golpe do judô, o que mais gosto: VAZARE.
Saí do mercado, sem o leite em pó, mas com alguns itens que não precisava e iria perder na geladeira e, antes de ir conversar com o zelador, parei na entrada do prédio que moro para conversar com a mulher que leva três pinschers ao mesmo tempo para passear.
Os enviados do sétimo selo me adoram, ou apenas sentem o cheiro dos meus cachorros. O mais engraçado é que a gente tem uma conversa que sempre continua de onde parou, méritos dela, porque eu não lembro nem o que almocei ontem.
E foi aí que falei de uma pessoa especial que a vida levou no ano passado, assim, do nada. Sempre que me lembro me assusto como tudo é muito fugaz, ainda tenho a última mensagem que mandei pra ela aqui, “espero que você esteja bem”.
Eu sempre falo bem das pessoas. Mentira, eu falo mal de um monte de gente também, faz parte. Agora, de vocês que comentam na minha newsletter eu nunca falo mal, nem mesmo pro rapaz que eu nem conhecia e que saiu do elevador e me deu um tapa forte na caixa dos meus peitos, apenas para falar o óbvio:
“Que camisa linda da porra, viu?!”
Como fazer amigos sem precisar influenciar ninguém
Não quis assustar ninguém, mas Salvador realmente é diferente. Quando criança, eu pegava quase duas horas de ônibus para chegar no colégio e durante todo esse tempo era um conversê geral no busu. A maioria das pessoas eram as mesmas, quase sempre, as piadas também.
Tinham aniversários, bolos e mesmo eu sendo bastante introvertido e caladinho, adorava passar aquele percurso, antes dos celulares, acompanhando os causos. Eles conversavam comigo, eu respondia às vezes, do meu jeito, ou só sorria e tudo bem. Não é como se as pessoas aqui exijam que os tímidos participem ativamente das conversas, ou falem, ou se apresentem e gritem no meio de todos, não é nada disso.
Na maioria das vezes as pessoas só querem dar um bom dia, receber um sorriso, ou ter alguém que possa lhe ouvir.
Carrego amizades em todos os lugares, separo elas em bloquinhos. Tem a turma que me acompanha há mais tempo desde os anos 00, da Universidade e também do “rock” e underground soteropolitano, tem a turma da “internet”, conheci quase todos desde os tempos do mIRC, twitter, etc, inclusive fica aqui a dica do texto abaixo:
Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas... no Mastodon

Outro local que fiz amizades que duram até hoje foi num clube do livro. Existem ambientes para pessoas tímidas se socializarem. E esse foi de longe o que mais gostava, era da Livraria Saraiva aqui em Salvador, tinha um encontro por mês, era ótimo. Os encontros acabaram, a livraria morreu, mas algumas amizades ficaram.
Tenho tantas outras amizades que encontrei por aí, por um acaso. Não faz muito tempo, estava em um desses atacadões, descendo a escada de saída e a pessoa subindo, nos falamos dali mesmo, na interseção dos nossos caminhos.
Ela fez questão de subir e descer para me dar um abraço. Nos conhecemos num curso de inglês que fizemos em 2017 e até hoje mantemos um contato não muito frequente, mas ainda é uma amizade preciosa, afinal, valeu duas subidas e descidas de escadas para um abraço, é óbvio que é.
A gente se encontra também nas mensagens que vestimos, num bom dia, num abraço ou até num sorriso genuíno, por mais que por dentro estejamos pensando “Que porra de maluquice é essa que essa pessoa tá dizendo?”.
E quando tudo faltar, coragem, disposição ou mana, façam como os pinguins de Madagascar: Sorriam, e acenem.
Sabedoria das Ruas ou o “Sábio das Ruas” é uma tradução medíocre, já diria Imortan Joe, mas é basicamente a habilidade de sobrevivência urbana. A pessoa que sabe se virar na cidade sem cair em roubadas, aquela que já tem um jogo de cintura a mais pra não ser feita de otária facilmente.
Role Playing Game - Jogo de Interpretação de Papéis como Dungeons & Dragons e tantos outros, aquele que jogam em Stranger Things com dados esquisitos, monstros, papéis e nenhum beijo na boca.
Quando alguém tem um papo chato, lento, insuportável. Sabe aquela pessoa que chega no ambiente e surge uma nuvem cinza? Todo mundo arruma uma desculpa pra sair? Esse é o prosa ruim.
nossa eu amei! é muito o que eu tentei explicar pra um amigo da última vez que eu fui e que não conseguia ficar sozinha hahahaha estava em um dia super sem voz e todo mundo que passava por mim dava uma receita ou remédio diferente pra melhorar
Meu sonho é conhecer Salvador 🥹