Meus cachorros têm pavor de objetos inanimados que ganham vida. Se o vento derruba uma lixeira, se a câmera gira ao reiniciar a rede WiFi, ou qualquer outra coisa que deveria estar parada move-se subitamente, eles ficam pistola. Os dois morrem de medo desses artefatos mágicos que, inadvertidamente, se movem sozinhos diante dos seus olhos. Sem terem ideia de que alguma força externa agiu nas sombras dos seus conjuntos cromáticos fuleiros1, eles se assustam, latem e, de quando em vez, correm em disparada.
Da mesma forma, eu me alarmo quando descubro sinais que estavam acesos ao meu redor e eu, sem conseguir perceber quem puxava as cordinhas, apenas seguia como se nada demais estivesse acontecendo. Por anos, por décadas. É como se o roteiro da minha vida fosse escrito por M. Night Shyamalan, cheio de flores e objetos vermelhos pelos cantos das ruas, atrás das portas, e com copos de água meio cheios espalhados pela casa, como se fosse algo banal, mas que no futuro, na hora da grande reviravolta 👽, se revelariam serem mais do que coisas esquecidas por aí.
Em casa, eu sempre ouvi que era muito desligado; é como aquela música dos Mutantes que o Pato Fu regravou tão bem. Meus pais acreditavam piamente que eu andava por aí como se nem sentisse os meus pés no chão.
Quando criança, minha mãe amarrava um barbante no meu dedo quando ia ao mercadinho do bairro. Até hoje me pergunto se não seria mais fácil escrever uma lista, mas talvez fosse um treinamento para a minha memória. Algo que Yoda ou Senhor Miyagi faria com seu aprendiz que, de início, ficaria puto e não entenderia porra nenhuma. Quando eu fosse pedir cem gramas de apresuntado ou, na pior das hipóteses, fosse pagar as compras, eu veria o meu dedo com aquele cordão e me lembraria de trazer também uma lata de creme de leite que não podia faltar de jeito nenhum!
Ou isso, ou teria que fazer todo o caminho uma outra vez repetindo "creme de leite, creme de leite, creme de…" e traria um leite condensado.
Na escola e com meus colegas não era diferente, mas aprendi a fingir que me lembrava de tudo: dos nomes, dos lugares, das histórias. Se esquecia, fazia graça, inventava que era uma brincadeira ou que a pessoa se parecia com o nome que eu dei. Se tivesse tempo, até contava (inventando na hora) a história de alguém que tinha aquele nome e do porquê dessa lembrança repentina. Até as histórias que nunca ouvi (será?) eu dizia, "ah sim, foi mesmo, essa você já contou", apenas para manter as aparências e não chamar a atenção.
Passei quase toda a minha vida sem saber que boa parte dos meus "esquecimentos" estavam ligados a alguns transtornos que venho descobrindo e trabalhando apenas agora, décadas depois. Não é que as coisas desapareçam daqui de dentro; é que elas entram em concorrência por atenção com milhares de multiversos simultâneos. Mais do que simples lapsos, a frequência com que esses eventos ocorrem sempre me assusta quanto mais fundo eu vou cavando em minhas lembranças, ou quando começo a catalogá-las em meus diários. São muitos os auto-cuidados que criei — sem me dar conta do porquê — que se transformaram em rotina.
Eu poderia criar um podcast (mentira, ninguém precisa de mais um) ou uma nova newsletter apenas com os inúmeros casos que fui descobrindo ao longo da vida, mas vou listar apenas três – o terceiro eu sei que você vai adorar – como breves exemplos, afinal, ao contrário do que Renato Russo cantava, não temos mais todo o tempo do mundo.
Ps: São coisas que podem acontecer com qualquer pessoa, então, se você se sentir contemplado isso não quer dizer absolutamente nada, apenas profissionais capacitados podem avaliar ou não a situação de cada um e é um processo longo o qual ainda estou no início da caminhada.
📜 Certificado
Faz pouco tempo, recebi um certificado por e-mail. A última vez que havia recebido um foi por exigência da empresa em que trabalho. Todos da minha equipe precisavam ter o conhecimento comprovado – passar em uma prova super difícil em inglês – em um framework super importante que a empresa, hoje, nem utiliza mais. Coisas da vida, já diria o grande escritor2.
Enviei alguns contos para editais de escrita ano passado. Alguns sequer aconteceram; outros enviei histórias escritas às pressas para caber nas regras e que, obviamente, não foram selecionadas. O certificado que recebi na minha inbox era referente a um desses editais. A pessoa pedia desculpas pela demora no envio do documento, afirmando algo que eu sequer tinha conhecimento:
🤯 Meu conto foi um dos selecionados no referido edital!!!1! 🤯
Finalmente marquei uma das caixinhas que faltava para preencher um desses vazios que a gente cria apenas para se martirizar. Ter algo que a gente escreveu reconhecido em um edital, por outras pessoas qualificadas (quem qualifica os qualificadores?) que leram o que criei da minha mente multiplexada, aprovaram e acharam digno de ser lido por mais outrem.
Sim, mais uma bobagem que inventamos como obstáculo para fazer as coisas que queremos, mas que vamos prorrogando por medo de fracassar, como se viver nesse mar de conteúdo criado por IAs não já fosse a epítome do fracasso da raça humana na Terra, ou seja, motivo suficiente para tocar Pequena Eva mais uma vez..
Só que isso aconteceu em dezembro de 2023, e eu só me dei conta quase seis meses depois. Coloquei avisos na minha agenda, na Alexa e jurei que não ia me esquecer da data, afinal seria o primeiro dia das minhas miniférias de dezembro; eu não tinha como esquecer 🫢.
Aposto que o mestre titereiro deve ter usado um nylon bem fininho, daqueles que nem com minhas lentes multifocais eu conseguiria enxergar.
🚘 G2 H - Memorize
Em uma quarta-feira de sol, num desses alertas que surgem no meu Desktop de lembranças de fotos antigas, a seguinte imagem brotou no cantinho do meu monitor e algumas engrenagens rangeram aqui dentro até girarem normalmente.
Antes de aprender a parar sempre no mesmo lugar quando me arrisco a ir em um Shopping Center, tinha esse costume aparentemente bobo e que as pessoas ao meu redor achavam graça de tirar foto dos lugares onde estacionava. Tudo isso para me lembrar onde havia parado. Às vezes ajudava um pouco, mas nem sempre era efetivo, já que eu esquecia em qual lugar havia saído logo após subir as escadas ou elevador e daí tinha que dar voltas na garagem.
Já achei, certa feita, que haviam roubado meu carro. Não tinha tirado foto nesse dia por conta de já ter adotado a nova tática de parar sempre no mesmo lugar. Rodei por 20 minutos procurando em outros locais por desencargo de consciência – não dá para acreditar em tudo o que eu acho que acredito –, até descobrir que estava no andar errado.
Coisas da vida.
Outra vez, o ano era 2009, parei num supermercado para fazer um lanche antes das aulas da Pós-Graduação (a lanchonete de lá custava o triplo) e, quando voltei, não avistei meu Corsa 97, duas portas, todo enferrujado. Era um supermercado, não precisava tirar foto. Só tinha um andar de garagem mesmo. Meu colega que pegava carona comigo botou as mãos na cintura, o que me fez pensar que se nem ele estava encontrando o meu corsinha, a coisa deveria ser um pouco pior do que apenas um lapso.
– É, meu velho, acho que roubaram o seu carro.
– Oxe? Quem vai roubar um carro velho daquele todo enferrujado?
Adivinha?
Pois é, nesse dia roubaram mesmo o meu carro. Só para bagunçar a minha mente ansiosa e adicionar mais uma possibilidade nas milhares, bilhares, que giram aqui dentro, me fazendo ser essa pessoa "desligada". De todas as alternativas, as que parecem mais impossíveis são as que mais ocupam processamento aqui dentro3.
🤷🏾 Trompaço
Procuro por pessoas nos lugares da mesma forma que procuro por carros em estacionamentos; se eu não marcar o lugar, lenhou4. Vou ter problemas. E em shows é um pouco mais complicado porque os locais são vivos e pulsantes, quem estava ali já não está mais; é como estar esperando uma onda em alto mar e a correnteza sorrateira te empurrando, te empurrando. Quando você olha pra frente já não está mais em Jaguaribe, chegou em Piatã e nem se deu conta.
Estava assim no início deste século, procurando por uma garota que tinha acabado de conhecer 😘 e à qual pedi licença para ir ao sanitário. Ela se despediu de mim como naquelas cenas de filmes em que o cara vai pra guerra e não volta mais.
– Volta logo? Sei.
– Oxe, claro que volto, é que eu to bebendo desde cedo e… Bom, eu preciso ir ao banheiro, rapidinho.
Como sempre, eu falo demais antes da hora, muita intimidade para três ou quatro amassos. Caminhei até a área onde ficavam os sanitários marcando mais ou menos o local onde a deixei. Voltei olhando para todos os lados. Depois de um tempo já estava circulando o palco sem ter certeza mais se era do lado direito ou esquerdo, ou no meio.
Um inferno dentro de mim.
A minha maior preocupação era no que ela estaria pensando. Sabendo, ou melhor, tendo a certeza que eu era apenas mais um igual a todos os outros homens que não prestam (desculpe a redundância). Conseguem o que querem e somem para a próxima conquista, todos iguaizinhos. Eu não poderia deixar isso acontecer, estava ali há tanto tempo girando e voltando aos mesmos lugares com o único objetivo de provar que eu era diferente.
Só para ilustrar, não faz tanto tempo assim, em 2017 no Lollapalooza, uma ida ao banheiro e para pegar mais uma cerveja que deveria durar 5 minutos levou mais de meia hora e cinco pessoas a rodarem meio autódromo atrás de mim. Coisas da vida. Encontrar pessoas em shows é difícil para qualquer um, eu sei, mas comigo é uma jornada.
No início do século, os Paralamas do Sucesso tocavam com uma certa frequência em Salvador, e se eu fosse fazer um curta-metragem desse dia, nessa hora, eles estariam tocando “Óculos”, mas eles provavelmente estavam tocando alguma daquelas novas músicas que nunca iriam vingar para dar o tempo necessário para as pessoas irem ao banheiro ou pegarem alguma bebida.
E como estava com foco total em tentar achar o lugar onde a deixei, acabei chutando o pé de alguém e tropeçei bonito. Um trompaço5 daqueles, tamanho igual o Tropeço da Família Adams. Aquele em que vamos catando ficha, acelerando levemente nosso passo tentando procurar um equílibro que muitas vezes só sera adiquirido ao colocar uma ou duas mãos no chão, a qual limparemos na calça ou bermuda assim que o sangue esfriar.
Que vergonha.
Na frente de todas essas pessoas, que agora devem estar se acabando de rir, eu podia simplesmente ir embora e pronto. Olhar para trás só iria aumentar o sofrimento, a minha dor exposta. Seguir meu rumo e me tornar apenas um lerdo qualquer sem rosto que tropeçou durante um show não é algo que ninguém vá se lembrar no dia seguinte.
”Não, isso não é certo, vou pedir desculpas em quem eu tropecei, até porque eu dei uma topada tão forte que quase arranco o pé da pessoa fora. E também, num show, quem vai ficar olhando para quem quer que esteja passando ao invés de se importar com quem está no palco?”
Olhei para trás e vi um rosto familiar. De onde eu conhecia aquela garota com olhos tão grandes? Ela apertava a boca e fazia uma expressão de fúria que eu só veria igual muitos anos no futuro, naquele filme em que o vilão mata um cachorro e aí a pessoa comum se torna um super assassino e aniquila meio mundo para fazer justiça. Com razão, afinal, matar cachorro é sacanagem.
Pior seria você tropeçar na pessoa que você estava há quase meia hora de relógio procurando.
Com aquele olhar de quem iria me matar se eu me aproximasse mais um centímetro sequer, ela me mirava de cima abaixo. Não abriu a boca, mas eu ouvi dentro de mim, "mas olhe que belo de um corno filho de uma…".
Eu poderia parar e explicar tudo, mas eu precisaria de dois tamboretes, bebidas geladas, um ambiente propício, pessoas ao meu redor. Eu precisaria de um tablet que sequer existia para mostrar vídeos, estudos e quem sabe um daqueles power point com vários círculos apontando para mim, mas não tinha nada daquilo ali.
Fiz o mais correto que poderia ser feito em uma situação como aquela. Como se fosse apenas uma pessoa que havia acabado de topar 🤡, soltei um "foi mal aí VÉI" e parti rumo ao desconhecido.
Fugi tanto desse dia que cheguei aqui, duas décadas depois para me desculpar a essa pessoa cujo nome não me lembro mais, mas aquele rosto, aquele olhar, eu nunca vou esquecer.
Coisas da vida.
Dando nomes
Existem alguns estudos que relacionam desatenção e ansiedade, como se fossem boas amigas que se amam, mesmo fazendo mal uma às outra. Pessoas com ansiedade generalizada têm mais dificuldade em filtrar distrações irrelevantes, aumentando a sensação de desatenção. Esses lapsos, ou o fato de acharem a pessoa desligada pode (eu disse, pode) estar ligado na capacidade do cérebro em processar novas informações.
Até mesmo a cena que muitos detestam no filme Interstellar, quando o pai atravessa um multiverso temporal para empurrar livros na estante e se comunicar com a filha, ganhou um novo significado para mim. Essa força invisível que empurra objetos e situações — sem a gente se dar conta de como ou do porquê — para nos alertar de algo que está à nossa espreita.
Ao contrário da menina no filme, que é corajosa e decifra um código para salvar a humanidade, eu, da mesma forma que os meus cachorros aqui em casa, ainda me assusto a cada nova descoberta. O processo de ir assimilando algumas situações e dar nomes às coisas pode não resolver, mas ajuda muito a gente a se redescobrir e a se perdoar também.
Por tanto, quando eu passar na rua e não te ver, por favor. Me puxe pelo braço, fale comigo. Não estou fazendo pose e nem fingindo que não te vi.
Sim. Já buzinaram pra me dar carona e eu não vi e andei três quilômetros até chegar em casa. Já acenaram, já até bateram no meu ombro na rua e eu não notei. As pessoas falaram comigo depois, logicamente, para eu acreditar que essas coisas aconteceram.
Por tanto, sim, se preciso for, tropecem na minha frente.
Rapidoris
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Fuleiro - Algo ruim, ou de baixa qualidade, pode ser descrito como fudido por aqui também, sem a conotação irônica inversa paulista de fudido como algo bom.
No livro Matadouro 5, Kurt Vonnegut, utiliza por diversas vezes em sua história essa frase: Coisas da vida. A maioria delas relatando coisas absurdas e que, no universo da história que é bem triste até, se convertem em alívios cômicos.
Comecei a escrever esse texto no mesmo dia que cheguei do Shopping onde não consegui parar no lugar de sempre porque estava lotado. Quando fui embora, procurei o carro pela garagem, rodei um pouco. Sentindo que andar ao léu não ia ser muito efetivo, resolvi fazer o mais simples, ativar o alarme apenas para descobrir que eu estava, literalmente, encostado no meu carro.
Lenhar - Se dar mal, se lascar. “Quer andar de carro velho amor, então venha, pois eu sei que andar a pé, amor, é lenha”, ou seja, Ivete Sangalo demonstra nessa poesia que antes andar num carro velho do que a pé, por quer ir a pé é que seria ruim mesmo.
O pai de um amigo nosso sempre utilizava a expressão trompaço a se referir ao que a gente poderia fazer num show para conseguir falar com garotas dada a nossa inabilidade social. Parecia, para ele, a única situação possível. E, depois desse dia, adotei para a minha vida.
Amei demais! Parabéns pelo seu conto ter sido selecionado.
Sobre lembrar da vaga onde parou o carro, lembrei de uma vez num shopping em São Paulo, mais de vinte anos atrás, minha mãe esqueceu onde tinha parado o carro e só foi possível encontrar com a ajuda do segurança que procurou com a moto o carro.
E teve outra vez que meu marido, na época namorado, parou o carro na rua e falou que iria levar as chaves por que vai que o carro fosse roubado, e dito e feito, levaram o carro.
Como uma pessoa que tinha que escrever no braço o nome da dentista pra lembrar que tinha consulta, eu super me identifico. Não sei se é um reflexo desse monte de estímulos externos, mas sei que as pessoas não entendiam também porque eu andava na rua com "Cláudia" escrito de todo tamanho em mim. Ai, invejo quem não precisa desses artifícios para viver.