O que o sanduíche, um procrastinador famoso e uma pequena placa computacional têm em comum?
Ou como um sanduíche e um cubo digital me fizeram escrever mais de 20 mil palavras em um mês
Não lembro qual foi a primeira história que escrevi, mas reservo um lugar especial em meu palácio da memória para a primeira que me cativou. Não foi nenhuma daquelas escondidas nas letras das cantigas infantis sobre tentativas frustradas de matar gatos ou levar chicotadas, tampouco algum conto infantil, ainda que eu gostasse de quase todos. A primeira historinha que me pegou estava em um dos lugares mais improváveis, e acredito que foi isso que fez meus miolinhos esparramarem pelo chão igual as ramas da batata.
No cantinho de uma das páginas da seção de pães num antigo livro de receitas de minha mãe, encontrei a história sobre a origem do sanduíche. No século 18, um Lorde Inglês que era o dono das Ilhas de Sandwich, era viciadinho no carteado. Só com isso já podemos comprovar duas coisas: Primeiro que o tédio era algo que sempre aconteceu, não com colonialistas, ricos, imperadores ou bilionários, e segundo que o vício em jogos não foi inventado com o Counter Strike ou o Roblox.
Numa noite dessas em que esse Lorde Inglês estava jogando seu carteado com a ceroula lhe apertando as partes — vou chamar de quinta-feira já que ele tinha muitas posses — ele decidiu inovar e fazer um rebranding do seu jantar. Como não tinha tempo a perder esperando que lhe preparassem algo, em seguida ter que sair do seu quarto gamer ou toca do macho, comer, e depois limpar seus dentes com sua escova de cabo de osso e pelos de porco, ele pediu a um de seus colaboradores (tenho certeza que seus criados tinham sentimento de dono) que trouxesse algo prático e rápido para ele comer. Foi nesse dia – Thirsty Thursday no calendário colonialista da rainha, afinal, rolavam uns aperitivos e outras coisitas mais – que surgiu a ideia de juntar duas fatias de pão com algum tipo de carne, embutida ou não. O sucesso foi tão grande, que o fast food que ele inventou (se foi criado na sua mansão era dele) ainda em 1700 e lá vai, ganhou o seu nome. Quer dizer, o nome das ilhas que ele mereceu possuir.
Poucas linhas num livro de receitas com capa dura e centenas de páginas. Apenas isso foi suficiente para me fazer viajar sem sair do lugar. Quando penso no poder que as histórias possuem, quase sempre minha memória me puxa pelo braço e me leva até esse dia.
O Cubo da Procrastinação
Escrevi mais de vinte mil palavras nesse mês de agosto, e tudo isso na minha nova máquina de escrever digital. Ela é miudinha, cabe na palma da mão, mesmo com a caixa de acrílico cheia de nove horas que comprei, transparente (coisa de gente antiga e brega). Vou deixar pra falar mais sobre ela em uma outra edição mais técnica, mas por hora basta dizer que consegui juntar duas pequenas obsessões e unir o "inútil" ao agradável numa tentativa mambembe e sem relevo de driblar a minha eterna desculpa do amanhã ou depois eu faço.
Tudo começou há um tempo atrás na ilha do sol quando eu vi uma reportagem sobre onde Seu Martinho (George R. R. Martin autor de Game of Thrones e tantas outras coisas) escrevia seus livros. No meu imaginário eu até esperava algo antigo como uma máquina de escrever, mas nem casando dinheiro eu adivinharia – urge a criação de uma bet literária – que ele escrevia suas bilhões de linhas sobre tretas familiares em um programa descontinuado de um sistema operacional que nem existe mais.
"Eu escrevo com WordStar 4.0 em uma máquina baseada em DOS puro. Podem zombar de mim… mas o WordStar e DOS são ambos bastante estáveis, e nunca me dão as dores de cabeça que o Windows me causa. (Eu não vou nem falar sobre o Microsoft Word, sobre o qual eu não tenho nada a dizer que possa ser publicado)." (Seu Martinho)
Compartilho com ele duas coisas, o ódio pelo Microsoft Word e o dom nato da procrastinação.
Eu sempre arrumo algum empecilho para me afastar das coisas que tenho ou quero fazer. Eu levei dois anos para concluir um curso de desenho uma vez por conta de uma caneta Posca branca, sem ela, eu não me sentia capaz de concluir as aulas. Parei tudo, passei meses até comprar a bendita caneta e quando ela finalmente chegou e eu já não tinha mais desculpas, eu criei outras. Da mesma forma que George nunca vai nos entregar o final da saga de Game of Thrones nos livros (quanto mais cedo você aceitar, melhor), eu inventei que o que me fazia nunca terminar minhas histórias de ficção era o fato de eu escrevê-las no mesmo lugar que trabalho.
Daí veio a ideia da minha máquina de escrever digital. Só que contrariando até mesmo as minhas próprias expectativas certeiras de fracasso, ela funcionou – o que provou que não urge a ideia de uma bet literária, senão estaria falido. Agora vou para outro canto da casa que não me lembra trabalho e nele, com um sistema operacional muito miudinho baseado em Linux, abro um editor de texto simples e sento o dedo. Não tão simples quanto o de Martin e também com acesso a internet, não sou tão adepto ao isolamento digital quanto alguns acreditam.
Todas as minhas histórias agora estão num SD card o qual precisei de uma pinça para conseguir espetar na minha placa Orange Pi Zero 3 com incríveis 1GB de memória RAM. Estou tão estupefato quanto vocês, o que parecia ser só mais uma procrastinação embalada numa inutilidade, deu frutos.
Participei de uma oficina com três encontros para escrita de um conto Pulp e em um mês o meu conto se tornou uma noveleta com mais de 20 mil palavras e quase 60 páginas, o máximo proposto pelo desafio. Tudo com um tecladinho e um mini monitor que tenho aqui ligados a essa caixinha de acrílico, na sala de casa, olhando a vida dos outros, a praia e algumas vezes gritos de “pega ladrão”. Coisas da vida moderna.
Procura-se desocupados Leitores Beta
Escrevi sobre duas irmãs e um carcará num futuro pré-apocalíptico (isso nem deve existir, mas quem se importa?) que se passa no recôncavo baiano nas cidades irmãs de São Félix e Cachoeira. Claro, bairrista que sou, não poderia deixar de escrever sobre nossos costumes, o jeitinho de ser e de falar. Ficou um pouco bobo? Sim, como eu disse, de George Martin eu só puxei a procrastinação.
Segue a primeira versão da sinopse da minha historinha:
Sombras, Fantasmas e Dois Charutos Fumegantes
No Recôncavo Baiano, onde as águas do rio Paraguaçu correm violentas e o mundo se fragmenta em um início de apocalipse, Iara busca respostas em meio ao caos. Quando forças ocultas roubam um livro que guarda segredos perigosos, ela se vê em uma jornada para desvendar mistérios que entrelaçam o espiritual com o terreno.
Acompanhada pela irmã, que possui o poder de invocar uma sombra misteriosa, e guiada por um enigmático Carcará, Iara explora os recantos sombrios de São Félix e Cachoeira — cidades unidas por uma ponte que desafia as águas ferozes do Paraguaçu. No caminho, ela descobre que sua conexão com o além é tanto uma maldição quanto uma arma. Enfrentando desafios que testam sua coragem e sanidade, Iara se depara com personagens e entidades que refletem a rica tapeçaria de lendas e crenças do Recôncavo Baiano, onde o passado ancestral colide com um presente distorcido.
"Sombras, Fantasmas e Dois Charutos Fumegantes" mescla fantasia sombria, elementos de mistério e um toque de horror, criando uma narrativa única que explora temas de sobrevivência, identidade e a luta contra forças além da compreensão humana. Em um mundo à beira do colapso, Iara terá que descobrir se é possível reescrever o destino — ou se o fim já está traçado.
Inclusive atenção pickpocket (tem uma personagem na história que perde o foco igual a mim):
Estou recrutando pessoas interessadas em fazer a leitura beta, se você tem interesse, me avise que eu mando o link. O que seria uma leitura beta? Bem, digamos que eu terminei a história e não vou mexer mais nela por agora. E devem ter alguns errinhos ortográficos que me escaparam, sabe como é, escrevi com o intuito de terminar, algo que me é muitíssimo raro. A depender do retorno das pessoas que lerem, eu vou enviar para uma revisão paga e tentar mandar para alguma editora ou edital que surja.
— E se não der em nada? — Me pergunta a pessoa ansiosa e orientada a resultados.
Para mim o resultado esperado já aconteceu, começar algo e chegar até o fim. Ainda que eu possa reescrever, editar e mudar coisas no futuro, o objetivo era ter um manuscrito para as pessoas lerem e darem seu parecer, já que eu alugo o mesmo amigo todas as vezes como leitor beta voluntário. Não tenho dinheiro, apenas óleo de peroba, mas se um dia eu ganhar algo com essa história vou pagar todo mundo com uma garrafa de licor original de Cachoeira-Ba. O contexto de 'original' dessa bebida pode ser discutido numa mesa de bar e nem sei se ela é mesmo feita lá em Cachoeira, mas isso é papo para um outro dia.
O que mais me chamou atenção na noveleta1 que escrevi foram justamente algumas frases que foram surgindo "do nada". A forma como nossa caixola junta pedacinhos de situações e lembranças para produzir algo novo. Tem gente que denomina todas essas conexões como criatividade, eu apenas chamo de "Porra, de onde foi que me saiu esse Carcará Ex-Machina?¨.
E assim, essas pequenas obsessões — do sanduíche ao WordStar, passando pelo meu cubo de escrita — mostram que as coisas mais improváveis podem se misturar e se digitransformar em algo novo. Talvez seja apenas por conta de que meu cérebro se recusa a funcionar de forma linear. Ou então esse foi o jeito que encontrei de combater a minha procrastinação.
É o fascínio de como vou juntar essas pontas soltas dentro de mim na próxima vez que for escrever algo que me mantém interessado nas cenas dos próximos capítulos. Talvez, na próxima vez que se encontrar rodeado de pequenas obsessões aparentemente desconexas, você também descubra onde elas podem te levar.
Um conto tem geralmente até 7500 palavras, acima disso até em torno de 20 mil palavras a gente tem uma noveleta ou novela, como queiram. Eu acabei me empolgando e passei das 6 paginas e fui ate quase o limite.
Oiii! (Na intenção de ser leitora beta)
Adorei a sua escrita, Márcio! 👏🏻
Tb tenho/uso um Orange Pi Zero 3 (mas com 4GB de RAM) pra sefhost de algumas coisitas aqui de casa :-)