Não lembro de nada do dia em que nasci, mas sei que foi num dia cinza. O céu estava fechando e as cigarras já cantavam alto. Da cozinha vinha um cheiro de laranja e café recém coado, um aroma que percorria todo aquele corredor frio — as paredes manchadas e geladas — até chegar na sala, onde meu avô assistia a algo na TV. Ele fumava um cigarro de palha e adormecia com facilidade, mas se alguém mudasse o canal ele logo resmungava:
— Ô, esse menino, deixe aí que eu tô assistino.
Quando eu nasci, já era noite.
Acordei todo mundo na casa: meus tios, que ainda eram crianças, meus avós e alguns conhecidos que moravam pelas redondezas. Deixei meus pais em um misto de felicidade e pavor. O que seria da vida deles de agora em diante? Tudo havia mudado num instante. Enquanto era só um acontecimento, um sonho, um prazo a se esperar, tudo ainda estava suspenso, como os sonhos que eles tinham de vez em quando. Não, eu estava ali. Chorei alto para deixá-los cientes do problema que eles tinham, agora, em mãos.
A chuva parou junto com o meu choro, que se calou num colo quente. Eu não lembro de nada do dia que nasci, mas eu sei bem como tudo aconteceu. O tempo abafou e aquele mormaço anunciava que, graças ao bom Deus de minha avó, ainda haveria mais água para cair no dia seguinte, e os milhos iluminariam a roça de amarelo. Minha tia pentearia novas espigas como se fossem aquelas bonecas que custavam o dinheiro de meses. As laranjas cairiam no chão se ninguém fosse pegá-las e o pé de manga ainda era jovem, mas já mostrava que teria muito a oferecer.
Na manhã seguinte, eu já estava ciente de que pertencia a tudo aquilo ali, apesar de ainda não pronunciar as palavras engraçadas que os outros deixavam escapulir de dentro de suas bocas grandes. Eu era tão pequeno que minha prima conseguiu me segurar sem esforço. De pé na sala, meu pai imitava meu tio quando ficava com fome, contava piadas e fazia todo mundo rir. Minha mãe apenas sorria, seus pensamentos estavam todos ligados a mim. A mesa em que se tomava café era nova e iria ficar na família por mais vinte ou trinta anos até nada daquilo existir.
Não lembro de nada, mas foi assim.
Mapa Astral
Às vezes fico um pouco triste quando penso no meu aniversário e não tem nada a ver com inferno astral. Nasci na roça, e naquela época as coisas eram diferentes. Minha certidão de nascimento só foi registrada um ano depois, e ninguém sabe a hora exata em que vim ao mundo. “Já era de noite, depois do café”, minha avó me disse uma vez.
Sem as informações detalhadas, complica um pouco. Pelo meu prazer secreto em ver pessoas que não gosto se dando mal, brinco que meu ascendente só pode ser Escorpião1, mas olho pra minha certidão plastificada, um papel tão grande e cheio de preguiça e espaços em brancos, preenchido com uma tinta quase apagada de uma Olivetti que não existe mais. Arqueio meus ombros pra dentro e envergo minha coluna confortavelmente para baixo (diminuindo 2 cm de altura) procurando ao menos um vestígio. Jogo contra a luz para ver se algo me escapa, nada.
Uma pessoa no século 21 não pode participar de nenhuma conversa séria sem essas informações cruciais:
Como estavam alinhados os planetas na hora em que você veio ao mundo?
Seu bumbum estava apontando para a lua?
Plutão, que naquela época ainda era um planeta, estava em Sagitário ou Virgem?
Finjo que nasci às 20:00 horas para facilitar.
Eu precisaria ter nascido entre 22:00 e 00:00 para ter ascendente em Escorpião, mas como eu gosto de dormir cedo, duvido muito. Já às 20hs, eu teria ascendente em peixes:
“Isso significa que você tende a ser sensível, empático, e intuitivo. Pessoas com Ascendente em Peixes são vistas como sonhadoras e podem ter um jeito artístico ou espiritual”.
Talvez faça mais sentido.
Finge que nasceu as 20h para facilitar, as 22h para brincar e, finge também, que eu sei como estavam alinhados os planetas na hora em que vim ao mundo - além de me privar das conversas sérias, temo isso ser um pecado enquanto alguns nasceram a noite, depois do café. (Mas se me lembro bem, sou ascendente em escorpião, sem fingir, e sem saber que diferença faz)
Ah, e feliz aniversário!
Amei demais e feliz aniversário um pouco atrasada pois hoje já é dia 4 :)