Encontrei abrigo nas palavras durante os primeiros meses da pandemia. Dentre todas as coisas que me salvaram desses últimos anos insalubres e distópicos, duas simples ferramentas foram as mais importantes: Papel e caneta. Sim, eu também não acreditaria se alguém me contasse.
Eu liberava espaço na minha memória descarregando pensamentos arredios e testando ideias sem me preocupar com o que estava sendo despejado no papel. Meu diário de escrita se tornou um refúgio. Um espaço para cicatrizar as dores de toda a minha ansiedade que me derrubava. Eu estava numa situação em que o meu coração pulava no ritmo das notificações que pipocam de todos os cantos. Cada mensagem no aplicativo de chat do trabalho (remoto) era pra mim a certeza que, daquela vez, sem sombra de dúvidas, eles descobririam tudo sobre mim. Da minha incompetência, de que eu não tinha todas as respostas e que meus últimos erros eram grandes demais para serem relevados.
A cada quick call1 que surgia, apenas uma certeza: Agora sim, é agora que vou ser demitido. Precisei de medicamentos e terapia para sair desse lugar de medo de um futuro que só acontecia aqui dentro da minha cabeça. Medo de coisas que nunca aconteceram. Quem sofre com algum tipo de transtorno de ansiedade deve entender bem o que é esse pavor do futuro incerto. Não seria futuro se fosse previsível, mas não existe espaço para racionalizar as coisas com meu jeitinho assustado e impotente de ser. E eu nasci assim, vou morrer assim, como se fosse a Gabriela do mundo invertido.
O dia em que vi que precisava de ajuda foi quando o meu chefe disse que queria falar comigo rapidinho e enviou uma chamada de vídeo. Eu corri pra colocar uma camisa, afinal tenho que trabalhar semi-nu com esse calor da desgraça em Salvador (tirem essa imagem da cabeça que hoje não é texto de horror), para poder iniciar a chamada que não deveria ser realizada como todas as outras: Com a câmera fechada e o coração em frangalhos.
Ele estava sério, o mais sério que uma pessoa com uma barba que desce para além de onde a câmera consegue enquadrar pode parecer. Ele compartilhou sua tela e pediu que eu lesse um documento. Minha vista que normalmente é turva para ler de perto (o braço vai ficando curto com a idade), nesse dia embaçou igual a magia de névoa do game de RPG que já passei das 300 horas de gameplay. Demorou até eu focalizar, e todo esse tempo que durou eu fiquei pensando:
“Então é assim que as pessoas são demitidas agora que trabalham remotamente?”
Que dia terrível, por apenas alguns segundos eu tinha morrido no futuro que eu criei só pra mim. Quando finalmente consegui ler, lá estava a declaração de um grande elogio pelo trabalho que vinha fazendo até ali. Estava sendo promovido e ganharia inclusive um aumento. É meio triste ser assim, mas pior mesmo é não se cuidar.
Depois desse dia eu decidi que iria fazer o que estivesse ao meu alcance para não sofrer tanto com cenários imaginários. Eu procrastino pra caralho. Em todos os lugares e áreas possíveis, inclusive profissionalmente. Só que a escrita criativa, por mais inusitado que possa parecer, me ajudou a vencer o desafio que é ser disperso e um vidente de terrores que (provavelmente) nunca irão acontecer.
Eu fiz tal qual os Maias e comecei a talhar pedras com mensagens apocalípticas a usar papel e caneta. Criei inúmeras listas, anotei coisas banais e importantes lado a lado, e risquei cadernetinhas bem simples e baratas. Se for muito chique a gente fica com polidactilia, sabe como é, cheio de dedo para escrever. Tenho hoje uma agenda de trabalho lotada de desenhos – outra coisa que me salvou – e tarefas. Dificilmente faço todas, mas ver o que consegui completar e ter um histórico de tudo o que fiz, me ajuda muito no trabalho. Tenho outras cadernetas coloridas com histórias e contos que um dia eu vou resgatar do mundo analógico. Um dia, hoje não.
Profissionalmente eu faço tudo em ciclos. Se eu for enxergar o todo eu desisto. E a escrita criativa tem esse lugar onde a gente pode sentar por sei lá, 10 minutinhos, e escrever sobre qualquer coisa. Histórias, contos, edições de newsletter e até cartas de despedidas nasceram assim. E o mais curioso é que quanto mais restritivo são os temas, melhor o que brota do papel.
Experimente um dia escrever por dez minutos sem voltar para trás ✍🏽
Sim, isso mesmo. Só escrever sobre o que estiver nessa sua caixola e deixar rolar. Já tiveram vezes que histórias surgiram no meio de uma lista de compras. Já comecei a falar de mundos distantes e de repente estava em frente ao Shopping Barra, esperando o Alto Coqueirinho/Campo Grande R1 e me lembrei de certa feita em que uma pessoa, que nunca tinha visto na vida, falou comigo e como aquilo mexeu com meu dia. Em especial quando tive que descer do ônibus e caminhar até chegar em casa e encontrar papel e caneta repetindo um número para não me esquecer.
— Você tem uma caneta? — Ela perguntou depois de passarmos a viagem toda conversando porque eu decidi, naquele dia, sair com a camisa do Offspring.
— Caneta? Tenho não, pra quê? — Perguntei para a moça que usava uma camiseta branca do Bad Religion. Muito mais inteligente não sair de preto naquele calor dos seiscentos demônios.
— Para anotar o número do meu telefone.
Talvez isso seja verdade, ou não. Pouco importa.
É muito mais sobre escrever, do que se preocupar com resultados. De acreditar que tudo o que fazemos precisa ser um produto. Precisa ter um propósito ou um suposto valor monetário. Você sabia que dinheiro nem existe? Pois é.
Qual foi a última vez que você fez algo fora desse ciclo tóxico que as redes sociais nos jogaram❓
Outro dia estava passeando pelo instagram naqueles malditos vídeos curtos que sabem que amo cachorros fazendo cachorrices e sempre acha que eu preciso ver meninas rebolando até o chão vez ou outra, sabe, homem hétero cis, não é possóvel que não esteja aqui para isso. E uma parada que me pegou de jeito e me fez repensar o uso de mais uma rede social, me obrigando a colocar um limite diário para não acompanhar a minha vida se esvaindo em telas e arrastos, foi o simples fato que existem agora uma centena de vídeos em que as pessoas estão falando na velocidade 2x. Tudo normal.
O que mais me surpreende é acessar os comentários e não encontrar uma pessoa sequer falando sobre isso! Porra, porque falar tão rápido? Não consigo acompanhar assim não gente, tenham calma com o tio aqui.
😪 Não, tá tudo normal. Está tudo bem, nada está acontecendo.
Sou eu o fraco que precisa de tempo e descanso. De comprimidos coloridos e de consultas. No final eu é que estou doente, e isso é o que sempre me deixa estupefato. É como se Shyamalan estivesse dirigindo minha vida, deixando flores e sinais vermelhos por todos os cantos numa tentativa de me avisar antes que seja tarde demais que esse é o plot twist de toda a história. Sou eu a falha na Matrix. O gato que se repete numa cena corriqueira.
Completo os cadernos com histórias, contos e tentativas repetidas de mudança de ponto de vista de muitos enredos que nunca irão se tornar livros. Eles são minhas sementinhas, de onde depois de algumas semanas, volto e folheio. Encontro excelentes ideias que no dia pareciam só uma bobeira descabida e entre textos que não servem de porra de nada (capitalisticamente falando) acho pequenas jóias em frases que eu só acredito que foram escritas por mim por conta da minha letra horrorosa. Essa é inconfundível. Nem feia demais para ser “chique medicine”, nem arrumada o suficiente para ser compreendida por outros (às vezes até por mim mesmo).
A escrita criativa é muito mais do que isso, eu sei. Fiz alguns cursos online durante a pandemia que me ajudaram a pensar de forma mais ampla sobre o que é ser um escritor. Sucesso, livros, leitores, assinantes e agora, em tempos de conversantes e olhantes, seguidores. As palavras mudam, o tempo passa e a gente sabe que é escritor simplesmente porque queremos ser lidos.
Se o mundo está acompanhando tudo em 2x e arrastando vídeos de segundos onde muitos se humilham por atenção, fazendo coisas que vão escalando cada dia mais rápido, imagina só a alegria que é receber um comentário num texto deste tamanho? Não importa se um ou dois. Tudo isso já é muito mais do que poderia pedir a quem, em tempos atuais, dedica seu tempo a algo tão fora de moda quanto ler.
Correntes de retorno 🌊
Outro dia estava em um show e uma colega minha veio falar que tinha lido um dos meus contos publicados na Amazon e adorado. Outro dia recebi um email sobre um texto que tinha escrito que tocou um colega meu e que me retribuiu com um post lindo em um blog pouco visitado feito por uma outra pessoa que nunca tinha ouvido falar, até aquele dia. Meu último texto foi compartilhado no grupo de RPG que participo e que, depois dele ser lançado, foi a fagulha que faltava para todos se ligarem que já é hora de voltarmos à jogatina. Uma onda de coisas legais e sem pressa que vão surgindo nos cantos esquecidos da rede mundial de computadores.
É nessa corrente que quero morar. Nesses ciclos parcialmente controlados. Não completamente analógico e alheio ao mundo atual. Deus me livre de me tornar uma daquelas pessoas que não sabem nem como trocar de canal ou mexer nas coisas, mas se posso me doar o mínimo para o capitalismo, é isso que vou fazer.
📝Não estou dizendo que é isso que você, que chegou até aqui, deve fazer.
Mentiria se dissesse que estamos todos no mesmo barco, mas a maré está enchendo e é preciso tomar muito cuidado com as correntes de retorno. Um dia desses, eu fui surfar e vi que meus colegas estavam bem distantes de mim. Não queria ficar sozinho, acho perigoso e sem graça. Dei várias braçadas com minha prancha que é quase um longboard e cheguei rápido até eles para descobrir que eles estavam há alguns minutos tentando sair daquele local.
Literalmente me fudi de verde e amarelo nesse dia. A correnteza puxando forte e eu, nervoso, dando braçadas sem sair do lugar. Chegou um momento que não tinha mais forças, meus braços desligaram e eu, sem cerimônia ou vergonha, pedi ajuda. Um dos meus colegas me rebocou e saiu me puxando e me empurrando até a gente sair da corrente do mal. Até chegar onde quase dava pé e eu sair quicando até a areia. Voltamos pra casa rindo pra caralho. Até hoje, anos e anos depois, a gente ainda ri desse dia. Minha prancha virou enfeite de quarto, mas a história do dia que fui rebocado no Surf segue viva. É minha e dos meus dois colegas. Um deles que tem nome de comunista, mas é neoliberal. Coisas da vida.
Vergonha pra mim é se lascar sozinho. Encontrei meu refúgio nas palavras que compartilho aqui e também no meu sítio pessoal. Meus desenhos estão por aí também. São tortos, bastante amadores e sem muita técnica. Mas cada um deles tem um tempo precioso que gastei só comigo. E não têm like ou engajamento que mude isso. Na verdade, nem diferença faz.

Cada traço irregular, cada linha que não segue a direção pretendida, fala mais sobre mim do que qualquer palavra polida e revisada a exaustão jamais conseguiria. A gente procura tanto ser autêntico, mas a verdade que não faz curva é que os algoritmos e esse mundo conectado demais, cheio de filtros e milhões de pessoas melhores do que a gente (seguindo uma régua que elas próprias criaram), nos tiram essa nossa individualidade. Seja nos minando energeticamente, seja nos fazendo acreditar que ainda não estamos prontos ou não somos o suficiente.
🌈 Ainda não chegamos lá depois do fim do arco íris.
E sabe de uma? Quem vai andar esse caminho todo é o coelho2. Eu vou ficar aqui, curtindo a brisa. Sentadinho com minha caneta, marcadores coloridos e minhas cadernetas burras (descobri que existe todo um mercado para cadernos inteligentes que custam três dígitos dia desses).
🪑E para quem quiser me acompanhar, é só puxar uma cadeira.
Tenho lugar de fala já que trabalho com gringos falando em ingrish!
Meu amigo Lionel Leal descreveu bem essa expressão:
”No Brasil o bicho fofo é associado à Páscoa ou a fertilidade, e para os mais cruéis é um tenro prato culinário, entretanto, na Bahia, associamos o Coelho a uma entidade que assume uma posição de risco cuja a qual você não tem interesse e/ou coragem de comparecer. Exemplo:
Amanhã teremos um café com o presidente da empresa, todos estão convidados.
Quem vai? (qualquer evento assustador)
Quem vai é o Coelho, não eu.
Por mais que ainda seja usado como item de sorte, quer dizer, pelo menos o seu pé é usado como amuleto de sorte (para ele foi um azar terrível ter o pé cortado provavelmente depois de ter sido morto) mas, ainda assim, aqui na Bahia ele assume a posição de um guardião.
Por tanto, sempre que você ouvir alguém dizendo “quem vai é o Coelho”, saiba que o evento referido vai ser Barril.
merecia um, dois, três, mil comentários! reflexão boa demais, me identifiquei
A cada obra de arte que leio nessa plataforma incrível, onde o intuito é dar mergulhos profundos em lagos particulares com raríssimas joias submersas, e não mais dar cabeçadas nas pedras do rio de águas apressadas e barrentas, em milhões de posts vazios tentando te conduzir ao inconduzivel (nem sei se existe essa palavra), tenho mais certeza de permanecer aqui, descobrindo histórias que esbarram nas minhas, encontrando almas sedentas por conteúdo de real valor, de poder agregar com vagarosidade e suculência, todas essas experiências no meu viver, onde o sentir se faz presente a cada piscar de olhos. Obrigada por me permitir um mergulho profundo no sentir das suas palavras.