Na antessala do Inferno tem um tamborete duro e sem paredes próximas para apoiar as costas. Você chega, grita, chama por alguém, procura a tal luz que tanto te falaram que iria ver, mas não tem porra nenhuma lá, só uma televisão de 14 polegadas, antiga, de tubo. A antena mole trava uma batalha milenar para segurar um pedacinho de palha de aço.
A imagem está toda chuviscada, tem um zunido desagradável que vai e vem. Você puxa o tamborete miserável que lhe espeta os ossos da bunda e aperta os olhos para ver o que está passando. Só podem ser cenas da sua vida, coisas que você nem se lembrava mais que tinha feito, momentos oportunamente desaparecidos do rastro de sua memória para serem usados naquela ocasião singular.
Não, não é nada disso. Você está no Inferno, lembra?
Na antessala do sétimo selo, abaixo de tudo, onde até o tempo se esqueceu de passar, você poderá até se sentar, mas o preço será alto: Assistir numa imagem desgraçada e toda tremida, ao Fatal Model Colossal Esporte Clube Vitória se defender de uma sequência infinita de escanteios. Por milênios. Cada tentativa frustrada, cada bola perdida, é só o prelúdio da verdadeira agonia que te espera. O goleiro com mãos de alface, os zagueiros que batem cabeça, os marcadores que parecem estátuas de tão lentos e deixam sempre alguém livre — tudo isso é apenas um aperitivo. A verdadeira tortura, a eterna, ainda vai começar.
🩴 - Durante o segundo grau ensino médio eu vivia na casa de um amigo que morava na Boca do Rio, mas gostava de dizer que era outro bairro para não admitir que não vivia em uma localidade nobre da capital baiana. Como eu morava em Itapoan — falava isso para não dizer que, na verdade, morava no Alto do Coqueirinho — era sempre mais cômodo ter a casa dele como ponto de apoio para fazer trabalhos escolares, dormir após algum show, etc. Naquele tempo ainda não existiam aplicativos e tampouco era difundida a ideia de se pagar quase nada para pessoas em situação de desespero te levar a lugares por uma mixaria usando o carro e o combustível delas mesmo.
A gente estava fazendo um clipe do mal, era macabro, apesar de ser uma música do Legião Urbana. Velas, cortinas fechadas, todos de preto e cara de poucos amigos. Se riscasse um pentagrama uma entidade apareceria na sala. Quando encerramos e as pessoas estavam indo embora, eu me apoiava no chapéu do Preto Velho de madeira que a mãe desse meu amigo trouxe do outro lado do mundo. A escultura era linda, era do tamanho de uma criança de nove ou dez anos, aquele chapéu grande maravilhoso e bem entalhado, envernizado com cuidado por um artesão que deve ter cobrado uma fortuna.
Quando o Preto Velho cansou de segurar todo o meu peso, eu ouvi um “crec” e só não caí no chão porque me apoiei no sofá. O chapéu tinha ido com Jeová. Partido ao meio. O sangue sumiu do meu corpo e eu fiz o que qualquer pessoa de bem faria, puxei o sofá e apoiei a lasca de chapéu deixando a escultura como se estivesse de castigo. Saí da casa de meu amigo na espinha mole1.
***
Só cinco anos depois eu tive coragem de confessar ao meu amigo. Ele ficou estupefato, não tenho palavra melhor para descrever a reação dele quando descobriu a verdade, já que a sua irmã — que era novinha na época — ficou de castigo por uma semana e apanhou MUITO quando, brincando, deve ter empurrado o sofá e girou o Preto Velho que surgiu com o chapéu lascado ao meio. Não adiantou ela dizer que nem encostou nele e que o chapéu quebrou sozinho, apesar de ter vários objetos ancestrais na casa, ninguém ali acreditava em obras do além.
Olha só que menina mais mal criada.
🧤 - Nos shows do underground baiano havia uma garota que, aposto, adoraria usar luvas. Isso mesmo, luvas em Salvador. A sensação era sempre a de que ela estava no lugar errado, parecia uma boneca de porcelana numa arena de paintball. Seus braços pareciam nus sem uma daquelas luvas chiques que as francesas usavam nos filmes do Circuito Sala de Arte . Ela andava, ou melhor, desfilava como se estivesse carregando uma mini bolsa invisível recheada de pedras preciosas muito frágeis. Suas mãozinhas segurando na ponta dos dedos a bolsinha invisível para não cair naquele chão imundo e podre.
Nessa época, ouvia muito uma música chamada Paris, de uma banda (Moptop) que havia acabado de conhecer por intermédio da turma metida a alternativa que andava comigo naqueles anos quentes antes do fim do mundo. Sempre que ela passava eu repetia comigo mesmo, “Você é tão Paris”. Às vezes, um pouco alto demais.
Doutores ou especialistas comprovariam que era admiração, mas eu fingia ser outra coisa. A imitava sozinho em casa, e ria sozinho também. Tinha vezes que ria durante os eventos quando ela aparecia.
É a primeira vez que falo/escrevo sobre isso. Nunca contei pra ninguém.
🙏🏽 - Eu fiz a primeira comunhão na mesma escola que Daniela Mercury estudou. Essa informação é irrelevante, apenas tinha o desejo de deixar isso registrado em algum lugar.
Para o dia da Catequese (acho que é esse o nome), a Escola, que não existe mais e deu lugar a um empreendimento imobiliário caríssimo, levou todos os alunos para um Convento aqui em Salvador. A gente ia passar o dia ensaiando e rezando 🫠 e na manhã seguinte seria a cerimônia onde viriam os pais e tudo mais.
Num dos ensaios, o Padre estava fazendo a oração de São Francisco e quando chegou na parte do “…é dando que se recebe…” meu colega, gaiato, soltou baixinho um LÁ ELE!
Iniciamos então uma luta feroz (e perdida) para segurar uma crise de risos. Por muito pouco eu não urinei nas calças de tanto rir. Sim, é infantil, boboca, machista, homofóbico e tudo mais, eu tinha doze ou treze anos, estávamos no início dos 90s, aquela coisa toda. Anacronismos à parte, a gente não parava de rir nem com reza braba e quase fomos expulsos. Imagina Só meus pais chegando no dia seguinte e, já na entrada, tendo que me levar devolta pra casa sem nem ver a cerimônia?
Tivemos que rezar não sei quantos Ave Maria e Pais Nosso depois de ouvir um sermão de quase uma hora. Alguns risos ainda escapuliam vez ou outra aos olhares incrédulos das freiras.
Não sou Católico, mas tive que passar por quase tudo o que se tem na ficha do personagem. Além da culpa católica, gosto dos feriados.
⅀ - Fiz Informática — Sistemas de Informação atualmente — na Universidade Católica do Salvador (nada a ver com religião, apenas não consegui passar na UFBa) e estava na segunda tentativa de três (ainda não sabia que iria perder novamente) de passar em Cálculo 2. Já havia feito Cálculo 1 duas vezes com o mesmo professor, Nilton, que Deus, Jeová ou seja lá quem está cuidando dele agora o tenha em excelentes mãos.
Eu e mais alguns amigos éramos tão ruins que, uma vez, um deles voltou com a prova com uma nota H e foi perguntar ao professor o que era. Ele respondeu sorrindo que era H de “Horríiiiiiiivel”.
Já era o quinto semestre e não tinha me livrado de fazer Cálculo com ele, e ainda teria pela frente Cálculo 3 e Numérico. Sabe quando você cansa e joga tudo pro alto? Desistimos de estudar e iniciamos uma sequência autodrestrutiva de beber antes das aulas às sextas. Entrávamos completamente embriagados atrapalhando quem queria aprender, soltando vários “Professor, professor… isso aí é horríiiiivel”, mesmo Nilton sendo um amor com a gente.
Ele era tão bom que diversas vezes nos dava nota 1 de 10 porque, segundo ele sempre repetia:
“Não gosto de dar zero para ninguém e vocês acertaram os seus nomes”.
🐰 - Num Caruru de 7 Meninos, ou de Promessa como chamamos aqui, eu fui um dos sete meninos, tipo um dos detentores do Pássaro Dourado de Jaspion. Eu tinha 9 anos quando puxei um quiabo inteiro debaixo da minha tonelada de comida, sem saber, até aquele exato instante, que deveria dar um Caruru no próximo ano. Meu primo que também era um dos meninos me explicou rindo e fazendo um sinal de “se fudeu” para mim.
Era tipo um esquema de pirâmide, era essa a pegadinha, por mais que achasse que alguém tinha esquecido de cortar um dos quiabos.
Como eu era tímido demais para oferecer um Caruru, mesmo sabendo que o trabalho iria ser todo dos meus pais, fiz o que qualquer Ibeji faria. Aproveitei o descuido do filho do dono da festa e enterrei o quiabo no prato dele.
Quando ele, contente, puxou o quiabo inteiro e mostrou a todos orgulhoso, eu fui o primeiro a levantar e bater efusivas palmas.
Quem vai pagar caruru é o coelho, não eu. Foi o que pensei naquele dia. E lá se vão mais de duas décadas que to devendo um Caruru, 2025 é logo ali!
Eu poderia escrever 99 a 10 mil motivos os quais eu tenho certeza que meu destino vai ser o inferno em brasas. Não existe a mínima chance de eu ser salvo.
Desculpe se deixei, em algum momento durante o tempo que escrevo essa newsletter, parecer que era uma boa pessoa, mas sabe, acho que ninguém é realmente bom assim. A gente faz tanta maldade em vida que quando paramos pra pensar e catalogar, percebemos o quanto é difícil escapar das profundezas da danação eterna.
Se existe mesmo céu e inferno e a prova para decidir onde você vai cair for no estilo CESPE, aquelas em que uma questão errada anula uma certa, eu já estou devendo pontos para umas três vidas, por baixo.
😈 E você? Já olhou como anda o seu gabarito?
Quando alguém está na espreita, ou andando nas sombras, quietinho, na surdina pra ninguém ver, geralmente se diz que a pessoa está na espinha mole. É só imaginar o gingado de alguém com a espinha dorsal flexível.
“Essa informação é irrelevante, apenas tinha o desejo de deixar isso registrado em algum lugar.”
Eu dei uma gargalhada sincera com essa bobagem.
Rapaz, que texto delicioso. Uma caneta de Matheuzinho não tem o mesmo charme e cadência. Tinha me passado dele aqui nas enxurradas do substack, mas obrigada por ter feito. Parabéns.